Por algumas vezes durante a duração de Creed III, vemos ou ouvimos a frase “construa seu próprio legado”. Não deixa de ser apropriado para a terceira parte de uma história que segue o legado da cinessérie Rocky e para o primeiro filme deste “universo” que não conta com a participação de Sylvester Stallone – desde 2022, o eterno Rocky Balboa trava uma briga nas redes sociais com o lendário produtor Irwin Winkler, envolvido na saga Rocky desde o início e nos filmes derivados; por isso optou por ficar de fora deste terceiro capítulo. Ele ainda recebe um crédito de produtor, provavelmente como uma forma de agrado.

Mas vamos falar a verdade: em Creed II (2018), Rocky já não tinha grande função na história. E, claro, embora seja sempre bom rever o “garanhão italiano”, neste terceiro filme, ele não faz muita falta. Creed III consegue contornar o notório declínio das sequências, graças a um antagonista inspirado e a um ótimo trabalho de direção: aqui, o astro Michael B. Jordan segue os passos de Stallone, que dirigiu várias das continuações de Rocky (1976), e assume o comando por trás das câmeras na sua estreia como diretor.

É um filme com teor dramático sólido: quando reencontramos Adonis Creed (Jordan), ele defendeu o título de pesos pesados no boxe e se tornou um atleta e personalidade de sucesso. Ele também vive bem com a esposa Bianca (Tessa Thompson) e a filha Amara (Mila Davis-Kent). Uma figura do passado, porém, surge para perturbar a paz: Damian Anderson (vivido pelo ator do momento, Jonathan Majors), amigo de infância e que tinha uma carreira incipiente no boxe. Ele reencontra o protagonista após anos na prisão. A princípio, Adonis lhe dá uma oportunidade em seu ginásio, mas, com o tempo o relacionamento passa a ser  inimizade que se estende até o ringue.

INCLUSÃO BEM-VINDA E MAJORS IMPACTANTE

O roteiro de autoria de Keenan Coogler e Zach Bailyn é bem preciso na caracterização do antagonista. Damian é um daqueles vilões “justificados” que roteiristas, de vez em quando, conseguem construir. O texto, de modo inteligente, nos mantém no escuro sobre a verdadeira natureza do que ocorreu entre Adonis e Damian quando jovens, ao descobrirmos, o impacto é sentido. Somado à atuação intensa e às vezes assustadora de Majors – que também como vilão, recentemente, foi de longe a melhor coisa de Homem-Formiga e a Vespa: Quantumania (2023) – e temos o antagonista mais interessante de toda a saga Creed.

Equiparando-se à atuação de Majors, tem-se um trabalho realmente seguro de direção de Jordan. O cineasta estreante, junto com o diretor de fotografia Kramer Morgenthau, encena de forma bem próxima e eficaz os momentos mais emocionais da história e também se dá ao luxo de algumas inovações nas cenas de boxe: alguns planos com o auxílio de computação gráfica dão a noção do impacto dos golpes – o efeito tem um ligeiro aspecto de videogame, mas felizmente é usado com parcimônia – e há até uma sequência surreal na luta entre Adonis e Damian, uma tentativa de traduzir o “espaço mental” dos lutadores durante o combate.

Jordan também demonstra sensibilidade por trazer ao filme um contexto de representatividade muito bonito, ao encenar várias cenas com linguagens de sinais, aproveitando o fato estabelecido no longa anterior da filha de Adonis e Bianca ter uma deficiência auditiva (a pequena Davis-Kent realmente é surda).

TRADIÇÃO COM INOVAÇÃO

“Creed 3” tem sim alguns escorregões: o desenvolvimento envolvendo a mãe de Adonis (a sempre ótima Phylicia Rashad) soa pouco conveniente demais e uma revelação no meio do filme fica confusa. Talvez um diretor mais experiente pudesse conduzir melhor esses momentos, tanto no roteiro quanto na filmagem, mas esses problemas são menores e, no geral, o trabalho de Jordan é admirável. Isso sem falar da sua atuação que consegue achar mais profundidade emocional em um personagem que já foi explorado em dois filmes anteriores. Não é todo mundo que exibe esse nível de confiança tanto à frente quanto atrás das câmeras.

Claro que “Creed 3” não é um filme 100% sério e dramático: fiel aos seus predecessores e à tradição da saga Rocky, seu objetivo é entreter e ocasionalmente aparecem alguns momentos mais bobos, como a cena em que Adonis arrasta um pequeno avião com cabos e a força dos seus peitorais e bíceps… Mas, apesar de ser um filme muito masculino, ele traz discussões interessantes nas entrelinhas sobre a própria masculinidade e uma visão fresca sobre conflitos e dilemas que permanecem atuais a respeito de raça, ética e amizade.

Se não chega perto da glória do primeiro Creed, este novo filme está em pé de igualdade com o segundo, que também era muito bom. Graças à nova visão de um diretor que estreia com confiança, a saga se torna um daqueles poucos exemplares do cinema de franquia que não perde o gás com o tempo. E o filme o faz apoiando-se nas tradições da sua própria cinessérie, enquanto também traz inovação.