Sérgio Machado estreou em longas-metragens com um triângulo amoroso protagonizado por três dos maiores nomes do cinema brasileiros neste século – Alice Braga, Lázaro Ramos e Wagner Moura. “Cidade Baixa” chegou impressionando o público e crítica com uma história de um triângulo amoroso bruto e sensual na Bahia. 

Agora, 17 anos depois, um novo impasse amoroso é o foco das atenções do cinema de Sérgio Machado. Adaptação do conto “O Adeus do Comandante”, presente no livro “A Cidade Ilhada”, do premiado Milton Hatoum, “O Rio do Desejo” traz a jovem Anaíra (Sophie Charlotte) como alvo do desejo de três irmãos vividos por Daniel de Oliveira, Gabriel Leone e Rômulo Braga. Desta vez, o cenário é a quente, úmida e inebriante Itacoatiara, cidade distante 270km de Manaus e localizada no meio da Floresta Amazônia. 

Com pré-estreia no centenário Teatro Amazonas, a equipe de “O Rio do Desejo” desembarca em Manaus e o Cine Set teve o privilégio de conversar com Sérgio Machado e Sophie Charlotte sobre a experiência de gravar a produção em Itacoatiara:  

Cine Set – O roteiro foi selecionado no edital da Secretaria do Audiovisual do Minc de 2011 e selecionado no Programa Petrobras Cultural 2012. E hoje, mais de uma década depois, “O Rio dos Desejos. Como foi este período todo para elaboração e realização do filme? De algum modo, as transformações do país e pandemia mudaram muito os planos ou não chegou a afetar tanto assim? 

Sérgio Machado – Eu nem lembrava que era tanto tempo assim (risos). A ideia para realizar “O Rio do Desejo” surgiu há 10 anos quando estava terminando um filme, mas, já pensando no próximo. Não sabia o que adaptar. Pedi a uma amiga crítica literária que listasse os 10 maiores livros lançados nos últimos anos e também os 10 maiores escritores do país. Quando cheguei no “A Cidade Ilhada”, eu parei tudo e nem fui atrás dos outros. Considero o Milton Hatoum, de longe, o mais talentoso autor brasileiro vivo. Quando o procurei, ele atendeu de forma muito rápida. 

Ganhamos de forma muita rápida todos os prêmios possíveis para fazer o longa, porém, precisei atrasar um pouco o início por conta das gravações de uma série. Foi quando aconteceu o pandemônio antes da pandemia com os governos que lutavam contra a cultura. Tudo começou a demorar mais – autorizações, burocracias -, gerando uma sensação de que era proposital aquele estado de coisas. Sofremos muito com tudo o que aconteceu no Brasil justo em um momento do nosso cinema em plena ascensão. 

Com isso, o dinheiro, que antes era suficiente para fazer o filme, já não dava mais para realizá-lo da maneira ideal. Para ter uma equipe de qualidade, o número de profissionais ia diminuindo a cada semana – o diretor de arte ficava três semanas, outro profissional duas e por aí vai. Tem uma foto no meu Instagram com a diferença do primeiro para o último de gravação – no fim, estão apenas oito pessoas. 

Ainda assim, foi incrível porque o elenco e a equipe compraram a ideia de que todos seriam tratados iguais, independente se fosse a estrela do filme ou um figurante – algo que já havia feito no “Cidade Baixa”. Todos andavam pela rua, cumprimentavam as pessoas. Viramos amigos da população, Itacoatiara nos acolheu de uma forma maravilhosa. No fim das contas, isso deu o tom de “O Rio do Desejo”. 

Cine Set – De que forma gravar em Itacoatiara, passar pelas regiões por onde estiveram contribuiu para o trabalho de vocês? Como foi a recepção na cidade? 

Sophie Charlotte Itacoatiara foi muita receptiva com o filme, abraçando todos nós. A população está e faz parte do filme pela nossa vivência e convivência com os hábitos e dia-a-dia da cidade. A rotina é muito diferente: perto do meio-dia, esquenta muito e todo mundo se recolhe. Depois do almoço, a circulação volta ao normal. No primeiro dia, não entendi nada e perguntava: “onde estão as pessoas?”.  

Eu andava muito pelos mercados. O Otto (filho de Sophie com Daniel Oliveira) também estava junto e até hoje fala do suco de taperebá e dos peixes que comia. Ele se tornou o mascotinho da equipe. Tivemos o tempo para entender o ritmo do local, observando ainda as cores e as comidas, as quais vão nos compondo, reconstruindo e trazendo novas possibilidades. 

Lembro do rio passando o dia inteiro na nossa frente, das pessoas convivendo com as embarcações, indo para os igarapés… Foi maravilhoso, uma aventura deliciosa. É um daqueles convites de se ter uma vivência brasileira, amazônica e poder mostrar ao mundo estas belezas do Norte do nosso país. Guardo tudo com muito carinho. 

Como o Sérgio falou, pude ser trainee por um dia em diversas áreas: bati claquete, corri, fui atrás de locação. Foram muitas as aventuras. Só agradeço e ver chegar aos cinemas é divino porque “O Rio do Desejo” ser lançado é fruto de muita resistência. Agora, precisamos celebrar tudo o que resistimos e reconstruir o nosso potente cinema brasileiro. 

Sérgio Machado – Sobre esta ligação com Itacoatiara, dia desses me perguntaram como foi a experiência “Fitzcarraldo” de filmar na Amazônia (risos). Falei que a nossa vivência não teve nada disso. Claro que houve perrengues como, por exemplo, um assistente com uma grave reação alérgica após a picada de um inseto, mas, de modo geral, nunca vi uma cidade e população receber tão bem um filme. Quero filmar lá de novo. 

Cine Set – O conto “O Adeus do Comandante” tem sete páginas. Como foi expandir esta história trazendo mais personagens, outros conflitos, tendo entre os roteiristas o Milton Hatoum? 

Sérgio Machado Pedi ao Milton para que escrevesse outros contos seguindo o caminho do primeiro. Ele respondeu que sabia o passado e o futuro daqueles personagens, expandindo mais a história. Na minha visão, “O Rio do Desejo” é até mais parecido com o segundo destes novos textos do que em relação a “O Adeus do Comandante”, pois, traz, por exemplo, a presença do terceiro irmão.  

Com estes novos contos, eu comecei a trabalhar com a Maria Camargo e, depois, com o George Walker Torres, mas, sempre em contato com o Milton. Ele, aliás, é praticamente meu vizinho e se tornou um grande amigo. Tudo o que eu escrevia, especialmente, sobre a Amazônia, enviava para o Hatoum. 

Agora, o Luiz Schwarcz (escritor e fundador da Companhia da Letras) sugeriu que estes novos contos sejam publicados. O conto virou filme e o filme vai virar um romance.  

Cine Set – Pergunta clássica: como surgiu o convite para o filme e o que te atraiu nele, Sophie? 

Sophie Charlotte – Foi arrebatador, mas, admito que tive um receio inicial. Quando chegou a proposta para o teste da Anaíra pediram uma self-tape, mas, não consegui fazer. Sinceramente, não sei o que me deu. Cheguei até a falar com o Bruno Gagliasso, o qual estava inicialmente previsto para fazer o filme, dizendo: ‘que coisa estranha, parece que estou com medo’. Foi quando ele me disse que eu tinha de fazer justamente por isso. 

No dia seguinte, perguntei para a minha empresária Ana Luiza se ainda era possível enviar o material. Ela me disse que o Sérgio estava indo para o Rio e falou para encontrá-lo para o teste. Foi maravilhoso ter sido assim em vez de virtual. Sentamos, tomamos um café, conversamos e, depois, fiz o teste com o Jorge Paz (ator do elenco do filme). Deu tudo certo. 

Depois disso, o Sérgio avisou que ainda haveria uma pré-preparação com a Fátima Toledo para entender como trabalharíamos os personagens. Fomos todos para São Paulo e esta etapa acabou sendo bastante enriquecedora e fundamental para “O Rio do Desejo” por ter sido uma condução física, potente, com muito suor e lágrimas, mas, ao mesmo tempo, amorosa. 

Neste processo, a Fátima nem piscava de tão atenta, o que é algo reconfortante, pois, precisamos atravessar zonas muito novas, inesperadas e difíceis na busca de um personagem. Ali, me ajudou a ter a base desta forte ligação da Anaíra com a natureza, aquela terra e a potência feminina. Devo muito a “O Rio do Desejo” e a esta preparação muitas descobertas e um amadurecimento grande como artista.  

Cine Set – Como você analisa que a sombra da matriarca que vai embora com uma pessoa e deixa a família afeta a Anaíra? Quais pressões joga sobre ela? 

Sophie Charlotte A casa da família é como se estivesse morta e assombrada pelo abandono, amargura, dor e segredos provocados por esta partida. A Anaíra chega para abrir as janelas e trazer a luz de uma vida tão pulsante a ponto de assustar quem está lá dentro.  

Tinha uma frase que o Sérgio sempre nos falava e ficava na minha memória: “a única lei que você não pode trair é a lei do desejo”. E justamente quando o Dalmo (Rômulo Braga) trava o próprio desejo que a tragédia se estabelece.  

Para mim, “O Rio do Desejo” é uma tragédia amazônica com ligações muito próximas dos parâmetros gregos do que é trágico com elementos irreversíveis e imponderáveis do encontro destas pessoas, além das paixões estabelecidas naquela realidade. Neste sentido, a figura do feminino muito forte entrando avassalador neste local sufocante torna insustentável a manutenção do sistema vivido pelos três irmãos até então.  

Assim, a revolução acontece, infelizmente, ainda trágica, mas, como parte de um processo de cura. 

Sérgio Machado – Pegando carona na fala da Sophie, no começo, eu queria ter atores amazonenses, descobrir pessoas novas no Estado. Fiz muitos testes na região, mas, quando começou a ter todos os apertos provocados pelas mudanças no contexto político, levando a menor tempo de preparação, aceitei que era necessário escalar atores com maior experiência. 

Curiosamente, agora que “O Rio do Desejo” está entrando no circuito de festivais, eu noto as pessoas impressionadas com a Anaíra. Canso de ouvir as pessoas achando incrível a descoberta que teríamos feito da intérprete da protagonista. Acho curioso como o público de fora e daqui do Brasil não reconhece a Sophie, confundindo-a com uma cabocla amazonense, entre elas, a Sandra Kogut (diretora de “Três Verões”). Considero isso um grande elogio. 

Sophie Charlotte – Acho que isso ocorre pela minha ancestralidade paraense. Fui criada com muito açaí, pato no tucupi, conhecendo todos os peixes da região. Não sou manauara, mas, tenho um respeito e admiração muito afetiva com o sotaque que, para mim, é muito instigante e específico, longe de ser fácil. 

Ocorrer este tipo de confusão de acharem que eu seja nortista é um grande elogio, pois, sou uma fã de todas as mulheres fortes e guerreiras do Norte do Brasil. Espero que elas gostem do filme também. 

Cine Set – É inevitável olhar para “O Rio dos Desejos” e não remeter a “Cidade Baixa” de uma personagem feminina que chega em um universo rígido e para lá de consolidado, transformando todas as relações. Diante disso, como você vê o paralelo entre as duas histórias e de que forma o ambiente ela transforma, potencializa as ações dos personagens? 

Sérgio Machado – Deve ser algo mal resolvido esta coisa de triângulo amoroso (risos). Uma amiga minha diz que é uma algo edipiano. Estou fazendo um desenho animado com dois ratos se apaixonando pela mesma rata. Realmente não sei direito, mas, isso está na minha cabeça. O pior é que nunca encarei uma situação do tipo, mas, deve estar no subconsciente. O cinema acaba sendo uma terapia… 

Sophie Charlotte – Continua fazendo, Sérgio (risos)! Pode fazer vários filmes sobre isso (risos)! 

Cine Set – Você, pelo menos, passou de três para quatro pessoas em “O Rio do Desejo”. 

Sérgio Machado – Verdade, agora, já é poliamor. De qualquer maneira, vejo uma correspondência entre sexualidade e liberdade na Bahia e no Norte do Brasil. Não chega a ser igual, mas, vejo os baianos muito sedutores, há uma sofisticação na sexualidade deles, enquanto o Amazonas apresenta uma sensação mais livre, talvez, advinda dos indígenas. Nos dois, vejo um paralelo entre o calor, o suor, os corpos não tão vestidos, culminado em locais que respiram paixões. 

Sophie Charlotte – Há também esta floresta que se impõe e imprime a potência da natureza nos nossos corpos. Estar em contato com a floresta, entrar em uma canoa para fazer um take era lindo e transformador. 

Casal Sophie Charlotte e Daniel De Oliveira estiveram no Cine Theatro Dib Barbosa para uma sessão especial de “Bacurau”.

Cine Set – Durante o período em Itacoatiara, vocês fizeram uma sessão para equipe de “Bacurau”, filme que tinha acabado de ser lançado e estava virando um fenômeno. Como foi a exibição? E o que representou para equipe exibir o filme no meio das gravações? 

Sophie Charlotte – Eu lembro de chegar em Itacoatiara e saber que existia um cinema (Cine Theatro Dib Barbosa). Recordo ainda de ter levado o Otto para assistir “O Rei Leão”. Enquanto a gente filmava, alguém da equipe tinha o contato do pessoal do “Bacurau” e achamos que seria demais assistirmos ao filme juntos. Entraram em contato e conseguiram uma cópia. Foi uma experiência importante estarmos todos ali para ver aquele obra que também era uma resistência àquele momento.  

Depois, o antigo proprietário nos convidou para subir na sala de projeção e tinha vários rolos de filmes. Ele me presentou com um deles, o qual eu guardo na sala de casa. Depois, com muita tristeza, infelizmente, soube que o cinema fechou. Fiquei arrasada. 

Sérgio Machado – Sonhávamos em fazer a sessão do filme lá. Estamos tentando ver uma forma de viabilizar a exibição em Itacoatiara.  

Cine Set – Qual a expectativa para a sessão especial de pré-estreia no Teatro Amazonas? 

Sérgio Machado – Minha torcida é que a gente consiga lotar este teatro lindo. Torço também para que o filme toque o coração do público. Que o Amazonas goste tanto da gente quanto gostamos de vocês. Todos saímos apaixonados. 

Sophie Charlotte – O último corte que vi não tinha ainda a trilha sonora. Verei a versão final no Teatro Amazonas. Estou muito ansiosa por este momento. Sou muito grata a todo povo amazonense e de Itacoatiara. Espero que eles se sintam pertencentes ao filme. 

Já me falaram três vezes que será no salão e palco principal e ainda não consigo acreditar. Eu sou apaixonada pelo Teatro Amazonas, um local simplesmente lindo. Fico pensando em qual vestidão de gala vou usar para esse evento, pois, é um teatro muito emblemático da nossa história. Será emocionante. Não vejo a hora.