Quem foi Elvis? O que ele representa para a geração TikTok? Apropriou-se da musicalidade negra e deixou vários artistas na miséria ou quis uma vida melhor cantando as músicas que moviam a sua alma? 

Rastreando o espírito desse personagem fascinante, Baz Lurhmann foi lá e cometeu seu mais novo filme, nove anos após “O Grande Gatsby”, uma ‘ópera da cultura pop em 3 atos’ como ousou definir quando estreou “Elvis” em Cannes. 

Se o corte original do filme teria quatro horas de duração, esse, de pouco mais de 2h30 que chega aos cinemas, dá conta do recado. Os segmentos podem não traduzir uma harmonia na montagem, com as transições entre o moderno e o clássico por vezes se traduzindo na estranheza – em especial nas cenas no culto, as andanças pela histórica Beale Street em Memphis ou a primeira turnê na estrada, com a trilha sendo inundada por versões de Doja Cat e Maneskin, entre outros. Porém, “Elvis” arrebanha atenção pela sua forma desavergonhadamente ‘camp’ no estilo fílmico sim, mas constituída especialmente em uma composição genuína da história de um homem predestinado. 

Dos seis, sete anos de idade aos 42, “Elvis” assinala uma experiência cinematográfica marcante, com todos os excessos característicos do cineasta australiano (ecoando aspectos de “Vem Dançar Comigo”, “The Get Down” e “Moulin Rouge”) compassados por um coração frenético. E esse coração pulsa em Austin Butler, californiano, galã e com um carisma maior que o de Leonardo DiCaprio e Ewan McGregor juntos. 

Butler, que comprou o bilhete premiado rumo ao estrelato com esse papel, diz ter sido tentado a “explorar a humanidade de alguém que se tornou papel de parede da sociedade” (suas palavras na coletiva realizada em Cannes 2022); ele ensaiou de seis a sete dias semanalmente com treinadores vocais para poder falar e cantar de maneira bem próxima ao biografado. E o que está impresso em casa frame do filme onde ele é Elvis agrada por ir além do que muitos atores consagrados fazem – especialmente os escravizados pelo “método” -, dando um tom bastante comedido a sua caracterização, onde se enxerga o Elvis do requebrado, da voz grave e do jeito um tanto bonachão, mas ainda se vê uma fragilidade, estupidez e vaidade que também o tornam cativante. 

Uma entrevista de Baz e Austin para o EW em abril deste ano dá conta de significar a coincidência que uniu o ator ao ícone pop, que perdeu a mãe também jovem, aos 23 anos. “Eu não estava tentando fazer nada além de pegar essa emoção e despejá-la na música e na minha interpretação”. E essa emoção veio diretamente para o cineasta que diz ter sido impossível ignorar o que recebeu vocalmente e emocionalmente do ator. 

Quando não for permitido falar, cante! 

Seja quando tem que lidar com os avanços do insidioso Coronel Tom Parker (Tom Hanks, razoável num papel extremamente caricato por cumprir única e exclusivamente uma função arquetípica – de ser o nêmesis do heroi/cantor) ainda no começo da trajetória, lidar com o vicio da mãe, depois o luto, o problema com os barbitúricos, o afastamento de Priscila (Olívia DeJonge) por conta da vida desregrada onde vai se degenerando, o Elvis de Butler comunica muito com pouco. São gestos, olhares que expressam toda a angústia daquela figura trágica. 

A origem do rock 

Essencialmente, as lições aprendidas por Luhrmann são representadas e ressignificadas nesse filme: o esplendor do visual de “O Grande Gatsby” e “Moulin Rouge”, a montagem videocliptica em “Moulin Rouge” e “Romeu + Julieta” (além do uso de uma trilha pop a serviço da narrativa) e a breguice empolgante de “Vem Dançar Comigo” estão aqui. E da série da Netflix “The Get Down”, a forma imagética de pensar atalhos na fluência entre a história audiovisual e musical, que funciona maravilhosamente bem quando Elvis canta algo que traduz o espírito momentâneo ou determinado momento da sua trajetória: Hound Dog no show aberto ao público onde termina sendo preso e celebrado como inimigo dos segregacionistas e Suspicious Mind (reinterpretada) quando denuncia as falcatruas do empresário perante seu público e fãs. São momentos esfuziantes de cinema. 

No “Elvis” de Baz Luhrmann, o envolvimento político e outras questões relevantes não são sublimadas, ainda que pudessem ter um tratamento melhor. Elvis convive com B.B.King e Big Mama Thorton (até Little Richard aparece), mas não há um tratamento genuíno para essas figuras fundamentais, com pouco tempo de tela e nenhuma função dramática. Ainda que tenha ficado de fora a cena em que o cantor vai até a Casa Branca ver Nixon; essa entonação aparece de forma mais acertada na sequência de gravação do icônico especial televisivo de Natal – talvez a parte mais eletrizante do filme ainda que a mais trágica e dolorida de assistir seja a sequência final, na gaiola dourada em Las Vegas. 

Casada com Luhrmann, a figurinista Catherine Martin assina as roupas de Elvis e tem a colaboração da Prada em alguns dos ternos que vestem o Rei do Rock em distintas fases – menos a assumidamente camp vestimenta dos shows em Vegas. Algumas pecas históricas Prada e Miu Miu compõe o figurino de Priscila, numa colaboração que já rendeu ótimos frutos em outros filmes de Lurhmann, como Romeu + Julieta. 

Ainda que a quebra no tom, no terceiro ato, mais funesto e soturno com Elvis declarando que não tem mais sonhos, provoque um desnível não chega a comprometer a experiência. 

É mesmerizante percorrer os andares e ambientes da mística casa da familia Presley, Graceland (que segue sendo local de culto em Nashville), ver o jatinho Lisa Marie ou os dantescos e empoeirados ambientes encarpetados do International Casino e Hotel, onde Elvis foi mantido escravizado por 8 anos. Lurhman e Butler nos mantem presos em uma armadilha da qual não se pode fugir por esta ser apaixonante. 

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