Após uma trágica fase 4 com filmes e séries longe de alcançar unanimidade entre o público e a crítica e uma fase 5 que arriscava ir ladeira abaixo – permeadas por um “Doutor Estranho no Multiverso da Loucura”, de Sam Raimi, cujo potencial não se concretizou e um “Homem Formiga e a Vespa: Quantumania” que só é válido pela presença do personagem Kang do agora cancelado ator Jonathan Majors – eis que os “Guardiões da Galáxia” salvam a Marvel do marasmo e mantém a regularidade da franquia gerida por James Gunn nos cinemas.  

Esse “Guardiões da Galáxia Vol. 3” simboliza o fim de uma era para o cineasta, que lançou o primeiro filme em 2014, e se despede da Marvel rumo à DC. E isso depois de dar a devida volta por cima, saindo pela porta da frente em vez da porta dos fundos, afinal, ele chegou a ser demitido após a divulgação de um tweet feito anos atrás com comentários duvidosos de cunho pedófilo.  

PROGRAMA DE FAMÍLIA 

O especial de Natal lançado no Disney+ ano passado já funcionou como um prelúdio para o capítulo final da jornada da família de párias do espaço com Mantis (Pom Klementieff) e Drax (Dave Bautista) brilhando mais do que os principais Quill (Chris Pratt) e Rocket (Bradley Cooper) ao sequestrarem Kevin Bacon para alegrar o capitão.  

A inteligência estratégica e, especialmente, o coração que falta a outras produções torna “Guardiões da Galáxia Vol. 3” um peixe fora d’água neste mar de repetições pasteurizadas que toma conta da indústria hollywoodiana. Gunn sabe disso e continua usando seu talento para usar a música e as referências da cultura pop na narrativa do filme, emprestando já no começo do filme um vislumbre do que Rocket sofreu na mão dos cientistas que o transformaram ao som de “Creep”, do Radiohead, a maior música de perdedor do universo.  

Seja no lar, doce lar dos Guardiões, o planeta Lugarnenhum ou na nave Bowie, a aventura especial é um programa de família, cuja formulação segue bem-sucedida. Todas as pistas que completam a motivação dos personagens geram os conflitos e fazem com que seus arcos se desenvolvam ou sejam retomadas, referenciadas e concluídas. Nenhuma ponta fica solta.  

Sabemos que foi a mãe de Quill amava canções pop, lhe dava de presente mixtape e deu o apelido de “Senhor das Estrelas”. Que Rocket é um guaxinim, por mais que ele não faça ideia do que seja esse bicho terrestre. E que com um certo tempo de convivência, todos conseguem entender o que Groot (dublado por Vin Diesel) diz a cada diferente entonação da emblemática sentença “Eu Sou Groot”.  

A HISTÓRIA 

Se na primeira parte dessa trilogia, os Guardiões se encontram e formam o grupo, além de resgatarem Gamora de uma vida de vilania e crimes com seu pai Thanos e Ronan, na segunda eles conhecem Ego, o pai celestial e ególatra de Quill, o resgatando dele próprio porque ele é “família”; O sentimento se solidifica na última parte com todos correndo contra o tempo para salvar a vida de Rocket, enquanto ele relembra passagens do período quando era uma cobaia.  

São muitos personagens retomados, outros novos, muitas situações, mas em nenhum momento “Guardiões da Galáxia Vol. 3” parece atabalhoado, apressado ou mal construído. Se os soberanos foram a ameaça constante do volume 2, aqui descobrimos que a sacerdotisa Ayesha (Elizabeth Debicki) responde a um superior, o Alto Revolucionário (Chukwudi Iwuji), um déspota megalomaníaco que quer criar a sociedade perfeita, nem que pra isso seja necessário destruir milhões de “imperfeitas” pelo caminho – e colocará o guaxinim em um acerto de contas com p passado.  

Nebula (Karen Gillan) agora é a Gamora do grupo enquanto a irmã está feliz da vida como parte dos saqueadores, liderados por Stakar (Sylvester Stallone). Por fim, Adam Warlock (Will Poulter) é, como já era de se esperar pela cena extra do filme anterior, um dos grandes chamarizes desse volume 3. 

 DA IRONIA PARA A INOCÊNCIA 

E tem tanta autoralidade nesta saga construída como uma ópera rock espacial, coisa que Gunn pode se orgulhar, já que é um dos poucos diretores a conseguir imprimir seu estilo em meio a conglomerados midiáticos como Disney e Marvel ou DC (seu “Esquadrão Suicida” também é divertidíssimo mesmo que mais soturno e sanguinolento). Isso, inclusive, permite trazer músicas de volumes anteriores dos Guardiões para reforçar certos momentos dramáticos da trama como “Hooked on a Feeling”, do Blue Swede. 

Para rivalizar com a melhor sequência de ação da franquia em que Yondu (Michael Rooker) e sua flecha detonam todos os saqueadores no volume 2, James Gunn, agora, faz a família trabalhar unida – incluindo Gamora! – para derrotar o vilanesco déspota e libertar a tempo crianças e animais de uma nave em rota de colisão. Aqui, aliás, Mantis deixa de lado o perfil de alívio cômico para também mostrar suas habilidades de lutadora. E a peteca nunca cai, “Guardiões da Galáxia Vol. 3” se mantém como entretenimento impecável. 

A ironia que Gunn aplica bem em “Esquadrão” dá lugar a inocência em “Guardiões”, que torna seres tão bizarros em figuras humanas e factíveis para os espectadores. E emociona pelo tom de despedida do terceiro ato do filme com a troca do protagonismo do grupo. Mesmo sendo mais centrado em Quill e Rocket, há espaço para o resto do bando brilhar e até para Kraglin (Sean Gunn) aprender a usar a flecha de Yondu ou Cosmos (voz de Maria Bakalova) mostrar sua força telepática.  

Bradley Cooper dá voz e espírito ao guaxinim mais inteligente e sarcástico do cosmos que não pediu para ser torturado e transformado em um “pequeno monstro”. Rocket descobre que também é terráqueo e decide ter agência sobre si, em um confronto com um dos vilões com mais relevo (o que é raro, em se tratando de Marvel) já trazidos para o MCU, um geneticista sadico e sem a ética de Thanos. Rocket relembra dos amigos que fez no cativeiro, como a foca Lyla (Judy Greer), cuja lembrança o ajuda no momento mais difícil.   

Participações de atores tão legais como Glenn Close, Benicio Del Toro, David Hasselhoff, Kurt Russel, Sylvester Stallone, Michelle Yeoh e Kevin Bacon fazem a saudade de “Guardiões da Galáxia” ficar ainda maior.