De uma terra desolada pela radiação, um viajante chega a uma cidade e, com estranhos poderes, se dedica a mudar a vida de seus habitantes. “Never Gonna Snow Again“, drama polonês exibido no Festival de Londres deste ano, pode não pertencer à franquia da Marvel ou da DC, mas se permite ser lido como uma história de origem de super-herói em pleno Leste Europeu. Após estrear em Veneza e ser escolhido pela Polônia para representar o país na corrida rumo ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro 2021, o filme co-dirigido por Małgorzata Szumowska e seu frequente diretor de fotografia Michał Englert tem sido bem-recebido nos eventos onde é exibido. Se conseguir bons distribuidores, sua história emocionante tem tudo para torná-lo um sucesso de público para além dos festivais. 
 
O filme acompanha Zhenia (Alec Utgoff, o Alexei de “Stranger Things“), um ucraniano que está tentando sobreviver na Polônia e que consegue um trabalho como massagista em um condomínio fechado habitado por ricaços. Suas massagens, parecem ter um estranho poder, confortando o pleno âmago de seus clientes. Ele toca – física e espiritualmente – nos traumas das pessoas e, no decorrer de um ano, ele lentamente vai mudando a vida do lugar. 
 
O roteiro, assinado pelos diretores, é astuto ao dar deixas e jogar pistas para o espectador, ao mesmo tempo em que se recusa a fazer afirmações categóricas. Ele implica, por exemplo, que o poder de Zhenia seja devido ao fato de ele ter nascido em Pripyat, cidade vizinha a Chernobyl, e logo possa ter algo de radioativo, mas não confirma essa hipótese. Ele sugere que ele encontra sua mãe em determinado momento do filme – algo importante dentro da narrativa – mas não faz nenhuma menção posterior a isso. 
 
Da mesma maneira com que brinca com a estrutura do filme de herói, os realizadores também bebem da fonte do filme de forasteiro – o ser estrangeiro que chega como se vindo de nenhum lugar específico e altera todo o seu entorno. Encerrados em suas mansões luxuosas, os condôminos que Zhenia visita estão profundamente doentes e ele se propõe a salvá-los – algo que ele chega a admitir em certa cena. 

MAGIA ESCONDIDA NO COTIDIANO

 
Utgoff está maravilhoso na pele do protagonista: o olhar dele, com a resolução de quem já viu tudo, deverá permanecer na memória do público. Assim como alterna entre russo e polonês no papel, ele também mostra uma facilidade para transitar entre comédia e drama – muitas vezes na mesma cena. 
 
O humor seco da produção mantém a ação leve durante boa parte de seus 113 minutos. Englert, que assina a fotografia, preenche esses minutos com algumas das cenas mais lindas do 2020. Cada tomada é impecável: as decisões artísticas nesse departamento, do enquadramento até o uso de cor e luz, são de cair o queixo e justificariam a existência do filme ainda que a história não fizesse jus a elas. 
 
Os diretores, no entanto, entregam um conto sobre ser estrangeiro e sobre a magia escondida na vida cotidiana que parece mais do que necessário num ano tão distópico. O mundo está ficando mais quente e eventualmente, como o título em inglês o filme sugere, “nunca nevará de novo”. Mesmo diante do vindouro fim, heróis existem se abrirmos a porta para eles. 

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