No início da sessão de “O Outro Mundo de Sofia”, minha caneta caiu no chão. Eu estava usando-a para coçar a parte de trás da minha orelha quando, por um lapso mental, afrouxei meus dedos e deixei que ela escorregasse pelos meus corpúsculos táteis, rumo ao abismo das fibras do carpete da sala 3 do Estação Botafogo. Lá se foi ela, perdida para valer. Nem com o acender das luzes, cerca de 100 minutos depois, fui capaz de encontrá-la. 

Veja bem, a perda da caneta se mostrou um problema: é que fazer minhas anotações é sempre uma boa forma de passar o tempo quando minha sessão deixa a desejar. “O Outro Mundo de Sofia”, com estreia marcada para dia 8 no GNT, foi uma dessas sessões. Porque, de fato, o documentário tem mesmo toda a cara de um especial de TV – bem menos que a de um filme. 

Na telinha

Vejamos: como um bom especial de TV, trata-se, sim, de um longa bastante informativo. Acompanhamos Guete, ativista e mãe de Sofia, de 13 anos. Sofia é portadora de uma condição rara e, além de não se comunicar, sofre também de crises convulsivas. Daí o uso medicinal de maconha no tratamento da menina, um santo remédio que lançou Guete ao centro do debate antiproibicionista no Brasil. 

E aqui está o compromisso com a informação: “O Outro Mundo de Sofia” é estruturado através de uma série de encontros entre Guete e figuras ilustres e esclarecidas. Eles conversam sobre coisas com as quais já concordam de antemão, expondo seus pontos de forma clara e articulada. Estão lá o Pastor Henrique Vieira, o pesquisador Sidarta Ribeiro etc. Tudo parece posado e pensado, como os livros que servem de pano-de-fundo à conversa com o pastor bem exemplificando. Há uma exacerbação do bom mocismo da empreitada, com direito a musiquinha bonita e tudo, que cheira a especial de televisão. 

Essa estrutura em torno de Guete dá até um certo ar egóico à empreitada – ainda mais tendo em mente como o filme martela seus pontos. Claro, quase como um adendo, a questão da guerra às drogas aparece ao final de “O Outro Mundo de Sofia” – mas vem pontuada pelo discurso de Guete, mulher branca de classe média, que confessa o quão chocada ficou ao descobrir a real extensão da violência do Estado. 

Esse quê egóico, em si, não é problema; diria até ser natural e necessário: não seria possível peitar políticos conservadores de frente, como Guete faz, de outra maneira. Assim, seria melhor que o filme se debruçasse honestamente sobre a personalidade de Guete. Pena que ele parece querer disfarçar quaisquer inconsistências, alisar todas as rugas, retificar todas as ambiguidades. Como em um especial de TV. 

No raso

Enquanto isso, toda e qualquer tentativa de “mergulho” (a palavra soa até boba aqui) na subjetividade de Sofia vai por água abaixo (com o perdão do trocadilho). Estranho, já que o título do projeto parece derivar desse intento. Mas tudo que o diretor Rapha Erichsen nos oferece ao tentar se aproximar de Sofia é muito grão e filtro de Instagram: por algum motivo, o mundo interno da menina parece um clipe hipster da banda Little Joy. 

(Falando em escolhas estéticas, é preciso mencionar a cor de pele hiper-saturada, com amarelos e laranjas estourados, dos retratados. É bem possível que isso tenha sido erro de projeção – a sala 3 do Estação Botafogo não é das mais confiáveis, venhamos e convenhamos. Quando o filme estrear na GNT, descobriremos se foi isso mesmo, ou se o DaVinci Resolve de alguém deu pau.) 

Passamos ainda um bom tempo acompanhando as minúcias do cultivo da maconha – e quem dera o filme trouxesse um pouco mais disso. Se o caso é informar, então essas passagens são o ponto alto da projeção. No fim, “O Outro Mundo de Sofia” está mais para um vídeo educativo ou reportagem especial do que qualquer outra coisa – saí da sessão sabendo tudo sobre maconha, mas sem minha caneta.