O dia 5 de outubro de 2017 entrou para a história da indústria do cinema: o artigo intitulado “Harvey Weinstein Paid off Sexual Harassment Accusers For Decades” (“Harvey Weinstein pagou os acusadores de assédio sexual por décadas”, em tradução livre) foi publicado pelo The New York Times e desencadeou denúncias, protestos e abriu os olhos para muitas opressões e crimes sexuais que vinham sendo silenciados durante anos.

Mas olhando em retrospecto diante de afastamentos de funções, carreiras levadas à lama, o que será que realmente mudou após essa data?

Ou melhor, será que algo, de fato, mudou?

Caso Weinstein e a falência da indústria

As acusações contra o magnata da indústria cinematográfica chocaram bastante e mudaram, de certa forma, os caminhos do mercado. A Weinstein Company era uma das maiores empresas hollywoodianas: sozinha, a produtora conquistou mais de 70 estatuetas do Oscar, além de impulsionar diretores relevantes como Quentin Tarantino e Woody Allen.

Entretanto, a reverberação das denúncias e as explosões paulatinas e inesperadas dos casos de assédio e exploração sexual envolvendo os irmãos Weinstein foram cruciais para que a empresa anunciasse falência em março de 2018. Mostrando a importância de se ouvir a voz das vítimas e como a união, solidariedade e respeito a elas é vital em um momento em que se pede mudanças e prestigia-se o bradar de pessoas que foram prejudicadas por rejeitarem posturas imorais, antiéticas e sem profissionalismo.

O caso Weinstein, dentro de sua escala de influência nas mudanças no mundo do cinema, não apenas contribuiu para a ruína de um pilar da indústria, mas serviu como a primeira peça de dominó empurrada. O produtor foi o primeiro de vários outros nomes influentes na indústria a ser investigado pela mídia e sofrer as consequências. É interessante observar como a partir do artigo do The New York Times outros nomes e acusações foram surgindo a ponto de indagarmos o quão intrínseco essas atitudes vis estavam enraizados ao processo cinematográfico.

Substituições em Projetos

Não foi unicamente a carreira de Weinstein que sofreu as consequências da denúncia midiática. Um ponto a ser destacado é como o jornalismo em seu papel de investigador social atuou e continua operando para trazer a tona esses casos silenciados. Nesse ínterim, outra acusação chamou atenção do público e do mundo cinematográfico: as denúncias de assédio e abuso sexual contra Kevin Spacey.

Considerado um dos melhores atores dessa geração, Spacey era um dos principais rostos da Netflix pelo sucesso de “House of Cards” e estava cotado como um dos favoritos ao Oscar de Ator Coadjuvante por seu trabalho em “Todo Dinheiro do Mundo”. Entretanto, após as denúncias de Anthony Rapp, Roberto Cavazos e Tony Montana sobre as insinuações do ator, a situação ficou insustentável. Spacey perdeu homenagem no Emmy, foi demitido pela Netflix e retirado de um filme pronto.

A carreira dele como ator foi praticamente abolida. Prova disso é “Billionaire Boys Club”, filme que ele estrela ao lado de Emma Roberts e Ansel Elgort, arrecadando apenas 126 dólares em seu primeiro dia de exibição.

Um dos adendos mais incômodos da situação de Spacey é ele ter justificado seu comportamento assumindo sua homossexualidade. Como se sua orientação sexual fosse a responsável pelas suas atitudes amorais e antiprofissionais. Porém, outra sensação desagradável que surge com os rumos de sua carreira é quando posta em contraponto com a de outro ator hollywoodiano que fora acusado de violência doméstica, mas estrela uma das maiores sagas cinematográficas recentes. Falo, claro, de Johnny Depp.

A lei moral que pune um não é válida para o outro?

É neste momento que indagações acerca de mudanças no mundo cinematográfico mostram-se desacompanhadas de respostas afirmativas e seguras.

james gunn guardiões da galáxiaDemissões Empresariais e Cancelamento de Produções

Ainda sob a pressão do caso Weinstein, a Amazon afastou e depois obteve a renúncia do seu então presidente Roy Price. Acusado de assédio pela produtora Isa Dick Hackett (“The Man in the High Castle”) que falou sobre o caso ao The Hollywood Reporter, salientando mais uma vez a importância do papel midiático na investigação e denúncia de crimes sexuais. Hackett, que já havia procurado a imprensa anteriormente para expor situações indelicadas de Price, levou o caso à cúpula da Amazon, que também perdeu mais dois executivos por motivos semelhantes.

A Amazon anunciou, no mesmo período, rever todos os projetos envolvendo a Weinstein Company.

A onda de demissões atingiu ainda Lockhart Steele, diretor editorial da Vox Media, Chris Savino, showrunner da série de animação “Loud House” do Nickeloden e Andy Sigmore, vice-presidente da Defy Media e criador dos vídeos “Honest Trailers”, entre outros nomes menos conhecidos. Todos sob a mesma acusação de assédio e abuso sexual.

Um dos casos mais ativos na memória, entretanto, é o de James Gunn, responsável pela direção de “Guardiões da Galáxia vol.1 e 2”. Tweets com alusão a assuntos delicados, como pedofilia, estupro e AIDS vieram à tona, o que ocasionoun a demissão do diretor horas antes de sua participação na San Diego Comic-Con deste ano. A situação colocou em suspense o futuro da saga liderada por Chris Pratt nos cinemas, já que Gunn escreveu o roteiro para o volume três e a produção foi suspensa, sem data de retorno.

Gunn até pediu desculpas por seus comentários e contando que eles surgiram como piadas, embora reconhecendo o mau gosto. Isso dividiu o público: muita gente aprovou a decisão da Disney enquanto a outra parte se revoltou com o caso. O elenco da produção formado por nomes como Pratt, Zoe Saldana, Bradley Cooper ficou do lado do diretor divulgando uma carta aberta solicitando à Disney uma revisão do caso.

Roman PolanskiExpulsão na Academia

Diante da movimentação das denúncias, a Academia de Artes e Ciências Cinematográficas tomou decisões que poderiam ter entrado em vigor bem antes. Mas com a força do #MeToo e a reverberação do caso Weinstein, finalmente, foram realizadas. Embora, se perceba que este passo não influencia a mudança almejada na cultura sexista em Hollywood, que – por exemplo – insiste em pagar salários menores às mulheres e exibir mais detalhadamente seus corpos que os do sexo oposto.

Com o motivo de não correspondência aos padrões éticos da instituição, a Academia expulsou do hall de seus membros Roman Polanski e Bill Cosby, em maio desse ano, ambos foram acusados e processados por estupro. Weinstein também foi expulso por conduta de violência sexual.

Tomando o caso de Polanski é vertiginoso notar que a acusação feita a ele foi há aproximadamente 40 anos e neste ínterim, apesar de não poder pisar na América, foi premiado por essa mesma instituição em 2003 por “O Pianista”. O que leva a decisão sobre sua expulsão ser pouco coerente e genuína ao olhar em retrospecto a postura da Academia, levando em consideração punir somente aqueles que a justiça criminal sentenciou, sem realmente pesar o impacto moral e reflexivo que a indústria cinematográfica exerce na comunidade.

Assim, será que algo realmente mudou no cinema após o #MeToo? Ou ele tem atuado como um mero trending topic para o marketing do mundo do cinema?

O discurso ético colocado em prática nessa situação parece ser uma medida camuflada para limpar o nome daqueles que “apenas” sofreram acusações. Aliviando, de certa forma, a instituição de considerações incômodas e desconfortáveis com movimentos que tem mais a somar do que a presença dos membros expulsos.


O Clima nas Premiações Principais

Apesar dessas transformações em andamento, o que foi visto durante as cerimônias de premiação desse ano foi importante para dar visibilidade ao movimento e começar a colocar em exposição como as mulheres na indústria cinematográfica têm sido tratadas e gostariam que fossem tratadas. Os discursos acalorados de Oprah e Natalie Portman no Globo de Ouro foram cutucões em feridas escondidas durante décadas num certame culturalmente machista, mas que demonstraram a força da união do movimento e o quanto esse poder velado é desconfortável e embaraçoso a todas as envolvidas.

O Oscar em todas as suas plumas quis dar vez e voz às mulheres, porém, dentro de seu escopo limitado e mascarado e sob a constante sombra de Weinstein, que auxiliou a premiação a chegar aonde chegou. É tanto que a noite teve um sabor agridoce com menos mulheres sendo premiadas, sendo interrompidas por seus parceiros homens enquanto discursavam, tendo que assistir homens acusados de violência sendo ovacionados. O que tornou um pouco menos decepcionante foi o discurso de Frances McDormand, ganhadora do Oscar de Melhor Atriz, a qual pediu que todas as mulheres indicadas e sentadas na plateia pusessem-se em pé e a disparidade fosse posta em perspectiva.

Evidenciando que o posicionamento das mulheres e as medidas imediatas assumidas sob o rosto de apoio e consideração soam mais como um discurso de capa vazio por dentro. Um Kinder Ovo sem surpresas, já que, além de prêmios frustrados no inicio do ano, festivais como o de Veneza continuam minimizando a participação das mulheres como realizadoras e profissionais. Lembrando que o movimento #MeToo também amplia-se para o papel da mulher no mercado.

Apesar dos discursos, dos broches de apoio e do preto como instrumento de manifesto, a possibilidade de ampliação da discussão em torno de temas tão complexos quanto o assédio tornou-se algo em certa medida reduzido a ações de marketing.

Hollywood sabe discursar, apresentar-se, mas o que realmente faz? Como quebra a roda de seu sistema?

Os tópicos destacados pelo movimento são importantes para a conscientização e a busca da igualdade de gênero dentro da própria indústria, que tanto promete, mas sempre deixa um gosto amargo na boca quando realiza.


Será que o #MeToo realmente trouxe mudanças?

O movimento foi importante para sentenciar homens como Bill Cosby por seus delitos. Para que a sociedade passasse a encarar com outros olhos a credibilidade da vítima, possibilitando a queda de um ministro e dar as empregadas de hotéis como Hilton e Marriott botões de pânico que lhe permitem alertar quando forem atacadas por hóspedes. Até mesmo o Nobel de Literatura não passou ileso à situação, tendo adiada sua entrega por um caso de assédio a orbitar na Academia Sueca. Mas o que mudou?

No último ano, contemplaram-se figuras queridas do público distorcendo a visão que se tinha deles por conta do peso das acusações e de seus atos. Afetando a produção cultural de forma temporária ou permanente, como os casos de Spacey, Louis C.K e Jeffrey Tambor. Nomes respeitados pelo público, mas que se tornaram tóxicos e viram suas carreiras e projetos serem descartados e apagados.

Mas diante de tudo isso, há Asia Argento: de vítima de Weinstein e fonte das premiadas reportagens de Ronan Farrow tornou-se acusada de envolvimento com um adolescente na época de 17 anos. A situação, claro, foi prato cheio para pessoas que viam o movimento como uma caça às bruxas desnecessário.

Até mesmo nessa situação é a mulher quem sempre fica na pior. Tendo suas acusações anteriores postas em perspectiva para serem desqualificadas, a misoginia estruturada e a falsa simetria de que as ações realizadas por grupos sociais diferentes geram o mesmo resultado. Mesmo assim, as denúncias são sempre válidas e necessárias.

É preciso lembrar que em 2017, a Time escolheu como “pessoa do ano” as denunciantes, mas o Emmy, no mês passado, já não teve broches ou discursos relacionados ao movimento. Olivia Munn foi segregada pelo elenco de “O Predador” por denunciar à Fox a participação de um membro do elenco na lista de agressores sexuais, tendo por consequência a imagem dele retirada do filme. Levantando mais uma vez a discussão se realmente houve mudanças ou foi apenas o vento da temporada, e ano que vem nessa mesma época o que aconteceu em 2017 vai ter sido empurrado para debaixo do tapete e preso ao esquecimento.

Será?