Reservo esse texto para discutir “House of the Dragon” de forma geral. Passada a emoção do capítulo final, parei para refletir sobre os incômodos, o que funcionou e ficou a desejar na série inspirada em Fogo e Sangue de George Martin. Sem mais delongas, vamos ao saldo final: 

Acertos

Destacaria três pontos como os grandes acertos da série escrita por Ryan Condal e Miguel Sapochnik: direção, elenco e a expansão do universo das crônicas. 

Mais do que um spinoff, “House of the Dragon” é um simulacro de todos os eventos que decorreram nas oito temporadas de “Game of Thrones”, incluindo os pontos fortes e fracos que D&D trouxeram a produção. Sapochnik esteve à frente de alguns dos episódios mais marcantes de Got e essa experiência foi fundamental, acredito, para trazer todo o vigor e imponência que o melhor período da dinastia Targaryen ofereceu a Westeros, apontando ainda as sementes que fragilizaram o reino e o fragmentaram. 

Dessa forma, sua visão imposta no episódio de abertura, em “Derivamarca” e “A Princesa e a Rainha” foram essenciais para estabelecer e alicerçar os conflitos e dispor os lados que veremos nas próximas temporadas. Ao lado dele, finalmente, vimos o olhar feminino projetado sobre a fortaleza vermelha. Martin é um autor que enxerga as mulheres como seres humanos carregados de conflitos – para além daqueles atreladas a feminilidade – e nuances bem acentuadas, nada mais justo que a ótica feminina traduzir em imagens as propostas do escritor. Assim, um dos grandes acertos é termos cinco episódios dirigidos por mulheres que inovam a perspectiva do lar Targaryen, dos conflitos políticos e da própria jornada de Rhaenyra e Alicent enquanto nobres criadas próximas, mas com expectativas distintas sobre seu futuro e o do reino. Destaco ainda que a direção de Clare Kilner é fundamental para moldar a forma como enxergamos o Deleite do Reino e sua nêmesis.

Vale a pena apontar os aspectos técnicos da série. A escuridão que Sapochnik mergulha seus episódios ainda me incomoda muito, mas a fotografia junto ao design de produção e o figurino conseguem nos imergir em uma Porto Real totalmente diferente da governada pelos Lannisters. Conhecemos alguns segredos da Fortaleza de Maegor, vemos os desenhos Targaryen, o fosso dos dragões, Pedra do Dragão e Derivamarca em seus auges; para o leitor apaixonado, viajar por esses lugares é a concretização de sua imaginação, algo possibilitado pela série. Devo dizer ainda que os figurinos de Rhaenyra e Laena Velaryon são um show a parte, junto a caracterização final de Viserys e as marcas deixadas pela doença que o consumiu. 

Para agregar a todos esses acertos, temos ainda a escalação do elenco, com exceção de um ou dois (sim, estou falando da Mysaria), os atores parecem encontrar um tom que aprofunda os personagens lidos em Fogo e Sangue. Alguns como Paddy Considine, Ryan Corr e Gavin Spokes conseguem dimensionar o carisma de suas personas e nos fazer querer saber mais sobre eles ou ter algum tipo de compaixão, mesmo em seus estados mais decrépitos. Sem sombra de dúvida, os nomes da série são Emma D’arcy, Matt Smith e Olívia Cooke. Cooke e Smith já eram conhecidos pelos fãs de sci-fi, mas é D’arcy quem realmente rouba a cena com seus olhares determinados, as mãos graciosamente repousadas sobre os filhos e a altivez de alguém que foi preparado para o trono de ferro. Fará falta no próximo ano sem a prequel. 

Ficou a desejar

Nem só de acertos, contudo, é projetado “House of the Dragon”. E, convenhamos, a série consegue emular tudo que há de pior em sua predecessora e ainda achar graça disso. Explico, qual a necessidade de mais casamentos sangrentos? Ou de trocar a jornada de personagens? Pior, de criar profecias e motivações que só fragilizam a trama? 

“Fogo e Sangue” é um livro pautado no disse me disse de meistres, septões e bobos da corte. Todos sendo favoráveis ao lado que lhes convém. A série, no entanto, optou por trazer um novo lado: o seu. Particularmente, não acredito que esta seja a visão oficial, afinal tal decisão ameniza ações de personagens e tira toda escala acizentada projetada por Martin e que nos fez amar figuras como Cersei, Jaime, Sansa e Theon Greyjoy. Assim, as ambições de Alicent Hightower, a crueldade de Aegon e Aemond, o excesso de condescendência de Rhaenyra, entre outros foi apaziguado e reduzido a motivos “justificáveis” devido – entre outras coisas – a manipulação paternal, a ausência de amor e ao processo de luto, bem Freud explicaria tudo isso aí. 

Daemon e Alicent foram os personagens que mais sofreram com essa inversão de degrade. O irmão de Viserys, declaradamente o personagem favorito de Martin, não tem nada em sua trama que não esteja o interligando a Rhaenyra, nem mesmo o tempo em que lutou nos degraus e esteve casado com Laena Velaryon o tornaram independente da sobrinha, como se estivesse em uma fanfic romântica cujo destino o conduz a princesa. Alicent também sofreu com as escolhas dos criadores da série. Enquanto nos livros ela começa a galgar seu espaço na corte lendo para Jaehaerys, aqui ela é apenas uma marionete do pai: bela, recatada e do lar; e, por isso ressentida com a enteada e ex melhor amiga. Sinceramente? O fato de terem feito as duas serem próximas e terem idades semelhantes apenas serve para construí-las como rivais teens, retirando as principais problemáticas que envolvem o conflito entre elas, além de sua tridimensionalidade,  como uma mulher conservadora.

Nesse quesito, a idade dos personagens também gera confusão. Laenor e Laena, por exemplo, começam como criancinhas e depois já ascendem a idade de Alicent e Rhaenyra. Viserys e Daemon tem uma diferença de menos de cinco anos, mas a forma como resolveram adoecer o rei e manter a juventude intocada de seu irmão, torna o espaço temporal maior. Isso não seria incômodo se, claramente, Alicent não parecesse ter a idade dos filhos. Enquanto uns envelhecem, outros parecem estar tomando banho no leite de papoula, complicado no mínimo. Agora imagine o pequeno Aegon, filho de Rhaenyra e Daemon, voando em seu dragão para fugir de uma batalha com apenas 03 anos? Parece que algumas contas não fecham. 

Não entrarei nos méritos da falta de racialidade dos Velaryon ou da cor de cabelo de Rhaenys, que ampliaria a discussão sobre a legitimidade dos filhos de Rhaenyra. No episódio “A Princesa e a Rainha”, já tivemos essa discussão pela obliteração da história de Laena. 

Acredito, no entanto, que todos esses problemas seriam resolvidos se não tivéssemos os saltos temporais. Responsáveis por fazer a história correr, os saltos retiram momentos significativos para a compreensão da história e não nos fizeram apreciar devidamente os indivíduos e suas interações, além de acelerar o crescimento e surgimento de personagens importantes para a dança que ainda não tem maturidade para tanto. Ainda mais se pensarmos que toda a guerra civil Targaryen dura três anos e os filhos de Rhaenyra são figuras chaves nela e depois. 

Todos esses problemas, no entanto, apontam para a percepção dos roteiristas sobre o universo de gelo e fogo. Uma das roteiristas, Sara Hess, deu algumas declarações controversas em relação a Daemon, o corpo de Rhaenyra e a relação destes; tais falas causaram rebuliço entre os fãs e possuem um encaminhamento diferente da visão que os contos emulam sobre os personagens. As entrevistas com diretores e showrunner após os episódios ainda apontam o quanto House of the Dragon bebe das últimas temporadas de “Game of Thrones” e seus grandes eventos e problemas.

Com tudo isso, o saldo que fica desta temporada inicial é a grandiosidade dos primeiros 130 anos da dinastia Targaryen traduzida em imagens e estrutura, mas a série ainda precisa observar com carinho a construção de sua trama e o desenvolvimento de seus personagens. Não sei se a saída de Sapochnik e a chegada de Alan Taylor mudará a condução das figuras principais da dança, contudo a ausência de saltos temporais já é um passo importante.

Daqui a dois anos poderemos conferir.