Vou soar como um disco arranhado: “Causeway” chega pra fazer parte à maçaroca indistinta de filmes realizados em digital, todos basicamente com a mesma cara. Tiremos isso do caminho antes de falar do filme em si. Me acompanhem, se possível. 

Qual é a cara de um filme contemporâneo? Imagens cinzentas mal iluminadas, profundidade de campo reduzida, aquela lisura característica do digital – é o que assola desde blockbusters como “Army of the Dead” e “O Agente Oculto”, a obras de médio e pequeno porte, como “A Órfã 2” e este “Causeway”. 

Agora, você deve ter percebido que apenas um desses longas teve um lançamento comercial nos cinemas (“A Órfã 2”). O que eu quero dizer é que talvez exista uma relação entre essa mesmice estética e a tal “crise do cinema” de que tanto falam (agravada pelo Covid, mas datando de bem antes – desde, talvez, o início do reinado das obras baseadas em propriedades intelectuais). 

Talvez porque a tela de cinema tenha se tornado só mais uma dentre tantas. Não seria coincidência, portanto, a transmidialidade que pauta o cinema contemporâneo: não basta assistir ao filme no cinema, mas há de se ver os vídeos no YouTube que o explicam, os reacts, as séries de TV, etc. Todas essas imagens se tornam intercambiáveis, mero amálgama de pixels

Talvez meu ponto tenha sido melhor expressado pelo crítico canadense Will Sloan: qual a diferença entre assistir ao arquivo digital de um filme num multiplex qualquer e assisti-lo em casa? 

Sloan argumenta que outrora, mesmo que subconscientemente, a plateia sabia que a imagem projetada no cinema tinha um peso, uma textura, uma profundidade própria. Eu diria que não é só o caso dessa imagem ter se tornado apenas mais uma em um mar de pixels indistintos; o pior é que muitos de nós sequer temos memória de assistir a algo fora desses termos. 

E agora, ao filme

Então, sim, este mais novo lançamento da Apple TV+ reitera a tendência contemporânea digital. O motivo de todo o preâmbulo acima, no entanto, é porque fica difícil separar as intenções da diretora Lila Neugebauer da mesmice latente do cinema recente. 

“Causeway” traz todos os tiques formais mencionados acima. Ao mesmo tempo, por enfocar a protagonista depressiva de Jennifer Lawrence, essas escolhas são recontextualizadas dramaticamente. 

A profundidade de campo reduzida, por exemplo, também reflete o isolamento da protagonista. Os quadros mal iluminados, o seu estado lúgubre. Assim por diante. 

Tudo isso é coerente, mas parece que Neugebauer não consegue conceber algo além da competência. Isso é um problema quando a personagem começa a voltar lentamente à vida. Pipocam algumas cores nas paredes das casas de Nova Orleans, cidade pitoresca e com um longo histórico como cenário fílmico. E, ainda assim, algo parece faltar, uma certa vibratilidade, talvez. Fica um gosto de mercúrio na boca, como um verniz metálico que contamina tudo. Você até pode tentar justificar isso dramaticamente, mas aí já seria forçar a barra. 

De uma vez por todas, ao filme…

… Que, por sua vez, é um drama modesto, mínimo, de aspirações naturalistas. Lawrence interpreta uma veterana que se recupera de um trauma severo na cabeça em sua cidade natal. Isolada, ela enfrenta demônios do passado – até que um raio de sol parece invadir sua vida. 

Esse raio de sol é interpretado por Brian Tyree Henry, e sua presença emana aquele calor gostoso que a gente sente na pele depois de uma temporada enfurnado no quarto. Que figura radiante, a sua – ainda mais depois da bobajada de “Trem-Bala”, ainda neste ano. 

Henry interpreta James, mecânico que também passou por traumas pessoais: perdeu a perna num acidente de carro. Ele menos fala do que grunhe, mas seu rosto é gentil e seu jeito é afável, e sempre que entra em cena, rouba o filme de Lawrence. 

Que, diga-se de passagem, também dá tudo de si – a gana característica de quem também assina a produção do filme e está colocando o seu na reta, como é o caso aqui. Especialmente, como alguém que experiencia a depressão, posso dizer que seu jeito lacônico, imerso numa rotina de incomunicabilidade catatônica e olhares enevoados, certamente se faz ressoar.

Então, sim: um filme no mínimo competente, ancorado por duas ótimas performances centrais – um pequeno drama naturalista. Suas ambições não são nem um pouco grandiosas, mas talvez seu efeito fosse outro em um contexto cinematográfico distinto.

Despejado em uma dentre inúmeras plataformas de streaming, com aquele visual de sempre que transpira competência asséptica, é mais um longa fadado aos abismos do córtex pré-frontal.