O tema do podcast de retorno do Cine Set é “O Rio do Desejo”. O filme é uma adaptação do conto “Adeus do Comandante”, escrito pelo amazonense Milton Hatoum, e presente no livro “A Cidade Ilhada”, de 2009, publicado pela Companhia das Letras. 

A história acompanha Anaíra, personagem interpretada pela Sophie Charlotte. Logo de cara, a conhecemos após matar o próprio pai para defender a mãe de sucessivas violências domésticas. Quem atende o chamado é o policial militar Dalberto, vivido pelo Daniel de Oliveira. Os dois se apaixonam e se casam, indo morar na residência da família, onde também vivem dois irmãos do agora ex-PM e dono de uma embarcação. O mais velho é o calado Dalmo, interpretado pelo Rômulo Braga, enquanto o caçula vivido por Gabriel Leone é Armando.  

Durante uma longa viagem de Dalberto pelo Rio Negro, os dois irmãos acabam se apaixonando pela cunhada. Daí por diante, a talaricagem rola solta em meio a grandes paisagens amazônicas. 

“O Rio do Desejo” traz o Sérgio Machado na direção. Para não quem está associando o nome à pessoa, ele comandou sucessos como “Cidade Baixa” e “Tudo o que Aprendemos Juntos”, além de ter sido roteirista de “Madame Satã” e “Abril Despedaçado”. 

 FILME MORNO

“O Rio do Desejo” chegou aos cinemas brasileiros neste dia 23 de março após uma longa tour de pré-estreias em diversas cidades do país, entre elas, Manaus, onde foi exibido em uma sessão gratuita e lotada no Teatro Amazonas com as presenças do Sérgio Machado, Sophie Charlotte, Daniel de Oliveira e do Milton Hatoum. Tinha tanta gente que muitos, infelizmente, acabaram de fora por conta de uma sem fim lista de convidados. Teve ecos de Amazonas Film Festival, o maior festival de cinema já realizado na Região Norte que ocorreu entre 2004 a 2013 e trouxe para Manaus estrelas internacionais do porte de Roman Polanski e Alan Parker.   

Na tela, na minha modesta opinião, acho que “O Rio do Desejo” deixa a desejar – péssimo trocadilho, eu sei. Como parte de um material base tão pequeno – o conto original tem pouco mais de sete páginas -, a história criada a partir dele se ressente de uma maior coesão. São quatro personagens em cena e, exceção feita a Anaíra, todos os demais são mal explorados. A ligação dos irmãos, fundamental para a criação da tensão da história e conhecermos mais quem são aquelas pessoas, não parece interessar muito. São relações vagas, pioradas à medida em que o tempo passa e os personagens do Rômulo Braga e Gabriel Leone irem e virem na trama, ficando longos momentos fora de cena. 

A Sophie acaba sendo a salvação para que “O Rio do Desejo” não caía totalmente em um novelão sem sal. Isso se deve à inteligência da composição dela que foge do estereótipo da mulher gostosa, sensual, ao externar muito bem a vontade de viver absurda de Anaíra ao mesmo tempo em que se vê perdida em como reagir a todos estes sentimentos confusos. E isso inserida em um complicado contexto familiar antigo do fantasma da mãe que fugiu e deixou aqueles garotos abandonados. 

Infelizmente, é pouco: “O Rio do Desejo” pode ter imagens deslumbrantes captadas pela fotografia do Adrian Teijido, mas, parece nunca, de fato, esquentar. Não convence como romance, drama ou até, vá lá, um thriller erótico. Tudo parece tão controlado, tão comedido que fica pela metade – diferente do que Sérgio Machado apresentou anteriormente em “Cidade Baixa”. Milton Hatoum continua merecendo uma adaptação mais inspirada para os cinemas, 

ARTISTAS NORTISTAS EM SEGUNDO PLANO

Agora, há uma questão pouco falada e que parece incomodar quase ninguém em relação a “O Rio do Desejo”. Não vejo ser debatida nas redes, não vejo ser comentada na crítica, muito menos no setor artístico. Talvez seja uma loucura minha, pode ser, mas, não deixa de me incomodar o fato do elenco principal do filme não ter ninguém do Amazonas. 

Todos os atores locais em “O Rio do Desejo” são praticamente figurantes; alguns com falas e outros sequer isso. Pego, por exemplo, a Isabela Catão: atriz do excelente “O Barco e o Rio”, curta premiado com cinco Kikitos em Gramado, tem pouco mais de duas cenas em que precisa levantar e sentar em uma cadeira. Já o Adanilo, ator amazonense com passagens por “Marighella”, do Wagner Moura, e que estrelou a segunda temporada de “Segunda Chamada”, também tem duas cenas, porém, uma delas você só escuta a voz dele. A Rosa Malagueta, uma das atrizes mais experientes da região, aparece um minuto como delegada de polícia. 

Nas áreas técnicas, também nenhum dos profissionais locais presentes em “O Rio do Desejo” assumiu o comando dos principais setores. Todos eram assistentes. 

Aqui, pode-se colocar o fato de que o cinema amazonense e da Região Norte como um todo ainda passa por processos de amadurecimento e consolidação. Falta, por exemplo, no Amazonas um curso de graduação voltado exclusivamente para o audiovisual, para o cinema em uma instituição de Ensino Superior, seja pública ou privada. Temos também carências em alguns setores, óbvio. 

Não se pode esquecer claro do apelo comercial, afinal, Daniel de Oliveira, Sophie Charlotte, Gabriel Leone e Rômulo Braga são nomes conhecidos em todo o país e que podem chamar a atenção do público nas redes sociais, sites, programas de televisão e por aí vai. 

Ainda assim, em uma época que tanto se alardeia a representatividade, da qual saímos recentemente do Oscar em que tanto aqui como lá fora se exaltou o simbolismo de se premiar uma produção liderada por asiáticos e protagonizada por uma mulher na casa dos 60 anos, por que não cobrar o mesmo de nós? Em “O Rio do Desejo”, não dava para ter, pelo menos, um dos irmãos interpretados por um ator amazonense ou da Região Norte? Nenhum técnico local capaz de assumir o figurino ou a direção de arte, por exemplo? 

No fim das contas, “O Rio do Desejo” repete uma prática comum ao se falar da Amazônia: sempre de fora para dentro, respeitoso sim, absorvendo aspectos da nossa identidade e cultura para tentar transmiti-lo da forma mais autêntica possível (ou quase) mas, sem nunca incluir totalmente mesmo diante de grandes talentos existentes por aqui. 

Curiosamente, o contraponto a esta escolha não tarda: na semana seguinte à estreia de “O Rio do Desejo”, os cinemas brasileiros recebem “Noites Alienígenas”, drama produzido no Acre e estrelado pelo trio nortista Gleice Damasceno, Gabriel Knoxx e, veja só, Adanilo. O longa ganhou cinco Kikitos no Festival de Gramado 2022, mas, isso é papo para semana que vem no próximo podcast.