Em 2008, dois filmes mudaram os rumos de Hollywood. Foi o ano em que o cinema de super-heróis passou para o próximo nível e espectadores pelo mundo todo sentiram esse abalo sísmico.
O Marvel Studios surgiu com Homem de Ferro, um espetáculo divertido, ancorado por efeitos em computação gráfica (CGI) sensacionais e pelo carisma de Robert Downey Jr. Foi também um filme feito meio no improviso com o diretor Jon Favreau deixando seus atores literalmente criarem falas e cenas na hora. Quando vemos em retrospecto o que nasceu de Homem de Ferro, fica claro o quanto ele é praticamente um milagre. Se não tivesse dado certo, como seria a indústria do cinema atual? Que tipo de filme estaria motivando as pessoas a saírem de suas casas hoje para ir ao cinema? Se é que estariam saindo… Eu realmente não sei.
Alguns meses depois, veio outro filme com um protagonista bilionário usando armadura, mas este não podia ser mais diferente do longa da Marvel. Batman: O Cavaleiro das Trevas, dirigido por Christopher Nolan, tinha pouco CGI, um longa operático, tenso, visceral, pesado até. Era essencialmente um filme de ação/policial, com um Batman e um Coringa inseridos na trama.
Esses dois filmes, lados opostos da mesma moeda, viriam a ditar o tipo de megaespectáculo que o público queria ver. Porém, com todo o respeito a Homem de Ferro, um filme do qual gosto bastante e ainda considero um dos melhores do MCU, havia uma eletricidade em torno de Cavaleiro das Trevas. Quem o viu na estreia se lembra dessa energia. E ainda hoje é possível sentí-la. Lá pelo meio da história, o Coringa de Heath Ledger diz ao Batman vivido por Christian Bale: “Você mudou as coisas, para sempre”. Hoje, parece que ele se referia também ao filme. A “escalada” – noção importante dentro da narrativa da bat-trilogia de Nolan – representou também a escalada do subgênero de super-herói.
NOLAN RACIONAL, LEDGER CAÓTICO: COMBINAÇÃO PERFEITA
Essa escalada já era prevista ao final de Batman Begins, quando o tenente Gordon (Gary Oldman) dizia ao herói que a presença dele iria inspirar outros malucos, mais perigosos – a interessante ideia, explorada em várias HQs do personagem, de que o Homem-Morcego gera seus próprios inimigos. E é o que acontece: quando vemos Batman, Gordon e o novo promotor de Gotham, Harvey Dent (Aaron Eckhart) se aliarem para acabar com o crime organizado na cidade, surge um maníaco com maquiagem de palhaço intitulado Coringa para destruir seus planos.
O diretor e seus co-roteiristas Jonathan Nolan e David S. Goyer não nos explicam nada sobre o Coringa. Não sabemos quem é ou de onde veio. Ele parece ter saído de um buraco do inferno, conta várias versões sobre as origens das suas cicatrizes, sem nunca nos dar certeza sobre nenhuma delas e está a fim de fazer experimentos sociológicos perigosos com a população de Gotham. Não é um personagem humanizado, e nem é para ser. Essa é uma decisão muito acertada.
Parte da eletricidade descrita antes, claro, decorre da chocante morte de Ledger, ocorrida meses antes da estreia do filme, por overdose de medicamentos. Logo começou o burburinho da internet, insinuando que o ator teria pirado por causa do papel. Bobagem, claro, mas que ajudou no impacto cultural e de bilheteria do filme. A essa altura, falar sobre a atuação de Ledger é chover no molhado, mas é claro que, assim como ocorreu em Batman (1989), este Coringa também torna o herói um coadjuvante dentro do seu próprio filme.
Boa parte da energia do longa também se deve ao conflito entre a atuação de Ledger e a direção. Um cineasta eminentemente racional, sempre obcecado com os pormenores de uma história e para o qual tudo precisa ser explicado, Nolan é controlado na sua mise-en-scène e na sua visão. E neste filme, ele dirigiu um personagem e um ator que floresceram no caos. É notório que Ledger como Coringa chegou a assustar até alguns dos seus colegas de cena. Sempre que ele aparece, a trilha sonora vira um acorde de guitarra dissonante e a câmera treme, fica inquieta, vira de cabeça para baixo – em que outro filme do Nolan isso ocorre? O Coringa parece roubar o filme do diretor: afinal, se o espectador parar para pensar um pouquinho, notará que os planos e as cadeias de eventos que o vilão põe em movimento não fazem muito sentido…
GOTHAM MAIS REALISTA
Felizmente, enquanto está todo mundo ocupado olhando para Ledger, Nolan mantém a história num crescendo constante, uma experiência com poucos momentos de descanso e imprevisível até para os fãs das HQs do Homem-Morcego. Claro, esses fãs já teriam na mente a transformação de Harvey Dent no vilão Duas-Caras, mas, mesmo a forma como ele é integrado na narrativa é orgânica e sua mudança é bem retratada por Eckhart. É ele, afinal, quem tem o arco dramático de “Cavaleiro das Trevas”, não Bale.
Aliás, o elenco todo é muito bom: ajuda muito rodear figuras de quadrinhos como Batman e Coringa de atores vencedores de Oscar como Oldman, Michael Caine e Morgan Freeman. Maggie Gyllenhaal substitui Katie Holmes com facilidade e graça e, curiosamente, até atores de filmes B como Eric Roberts e Michael Jai White aparecem e estão muito bem.
Nolan também busca fundamentar este filme até mais do que o anterior. A Gotham/Chicago dele lembra mais a Los Angeles de Fogo Contra Fogo (1995), de Michael Mann, do que as extravagâncias dos outros bat-filmes.
Claro que a condução da ação por parte do diretor continua problemática – a perseguição no viaduto possui erros de continuidade grosseiros – mas há um senso de força e de grandiosidade em momentos como a explosão no hospital, o assalto na sequência de abertura, a virada do caminhão enorme filmada nas ruas de Chicago, e o monólogo final de Gordon. Momentos como esse ainda arrepiam o espectador, quer ele veja o filme pela primeira ou pela décima vez – e este é um filme bem fácil de rever…
SOMBRAS DA GUERRA AO TERROR DA ERA BUSH
Tantos anos depois, “O Cavaleiro das Trevas” mantém sua força, mas é a forma como impactou a cultura popular que talvez impressione mais. Atualmente, não são muitos os filmes que plantam falas icônicas na mente do público, porém “por que tão sério?” e “ou você morre como herói ou vive o bastante para se tornar o vilão” instantaneamente se tornaram parte do vocabulário cinéfilo.
A forma como o filme encapsula as tensões da guerra ao terror dos Estados Unidos, pós-atentados de 11 de setembro, também ressoaram junto ao público. Batman: O Cavaleiro das Trevas é um dos raros filmes hollywoodianos – ainda mais em se tratando de superproduções – a abordar o tema do terrorismo doméstico, o maluco escondido em alguma cidade norte-americana, pronto para explodir ou atirar em seus compatriotas, sabe-se lá por qual razão. O Coringa nos lembra do quão fácil é fazer a civilização desmoronar e quem conhece a história recente dos EUA não consegue evitar, durante o longa, de rememorar figuras como Timothy McVeigh ou o Unabomber.
E a partir de certo ponto da trama, a situação fica tão desesperadora que o Batman se vê forçado a espionar os cidadãos e comprometer seus valores, para encontrar o vilão – uma alusão ao “vale-tudo” empregado pela doutrina Bush de caça aos terroristas pós-11/09. Claro, o filme não se aprofunda muito nisso e nem é seu objetivo fazê-lo, mas ao sintetizar essas tensões dentro da narrativa, Nolan e seus co-roteiristas só demonstram como estavam antenados com o momento histórico.
TRAUMAS DO OSCAR
Tudo isso – a morte de Heath Ledger, o clima sombrio do filme e as alusões ao mundo real – ajudaram a fazer de Batman: O Cavaleiro das Trevas um fenômeno cultural, mais do que apenas um blockbuster, do jeito que Tubarão (1975) ou Star Wars: Uma Nova Esperança (1977) também foram. O impacto se estendeu até, pasme, à Academia de Hollywood. Quando Cavaleiro das Trevas não foi indicado a Melhor Filme no Oscar, a polêmica foi tão grande que a monolítica Academia alterou suas regras no ano seguinte. E também consagrou Ledger, o que talvez não tivesse ocorrido se o ator não tivesse falecido. A propósito, somente dois personagens na história do cinema renderam Oscars a diferentes atores: Don Vito Corleone (Marlon Brando e Robert De Niro) e o Coringa (Ledger e Joaquin Phoenix). Isso é impacto.
Naquele ano, os cinco concorrentes ao Oscar de Melhor Filme foram Quem Quer Ser um Milionário?, O Curioso Caso de Benjamin Button, O Leitor, Frost/Nixon e Milk: A Voz da Igualdade. Particularmente, acho os três primeiros mediocridades absolutas. Os outros dois são ótimos filmes, mas nem arranham a sola do sapato de Batman: O Cavaleiro das Trevas.
Não é um filme perfeito, claro: de novo, há falhas graves em algumas cenas de ação e, para um filme que almeja um realismo, ele também apresenta uns elementos bem fantasiosos como a bat-tecnologia de sonar ou o próprio Harvey Dent, que jamais conseguiria falar tão bem com aquele rosto deformado. Mas continua um feito cinematográfico impressionante e um dos melhores blockbusters já produzidos por Hollywood: empolgante e envolvente, mas alimentado por um coração sombrio, pela noção de que loucura gera mais loucura.
Com o tempo, o Marvel Studios transformou a fórmula de Homem de Ferro na mais bem sucedida franquia de cinema de todos os tempos. Mas por ter elevado o subgênero, Batman: O Cavaleiro das Trevas é tão responsável pelo sucesso global do MCU quanto a primeira aventura do Tony Stark. Já sobre os filmes que seguiram seus passos…
Bem, tivemos o Zack Snyder, que tentou fazer todos os super-heróis da DC Comics seguirem a cartilha do “sério e sombrio”, quer se adequassem a isso ou não. Mas também tivemos Coringa (2019), que deve sua existência ao impacto da atuação de Heath Ledger e que abraçou de verdade uma visão adulta e assustadora do filme baseado em HQ.
Entre os extremos de luz e sombra, os super-heróis têm caminhado, dominado Hollywood – talvez até demais – e rendido filmes bons, ruins e medianos. Mas uma coisa é certa: depois de Batman: O Cavaleiro das Trevas, as pessoas nunca mais os viram com os mesmos olhos. As coisas mudaram, com certeza.