Ninguém nasce mulher: torna–se mulher.
Tomando a frase que abre este texto como pressuposto, fica a pergunta: quando foi a primeira vez que você se deu conta de ser (ou não ser) uma mulher?
Embora a sociedade pregue ideais de igualdade, crescer sob a tutela do gênero feminino não é uma tarefa simples. Desde cedo aprendemos que somos vistas de forma diferente, que precisamos ser protegidas e, por isso, tomamos cuidado com onde e quem andamos e como nos vestimos – isso de forma bem rasa. Em seus escritos, a socióloga Heleieth Saffioti afirma e demonstra como essa redoma imposta as mulheres modifica seu papel e atuação social.
Um dos impactos dessa proteção pode ser notado, por exemplo, nos estereótipos empregados as personagens femininas, perpetuando, em muitos sentidos, os ideais de cavalaria da idade média como a idealização feminina e a manutenção do status quo.
Durante muito tempo, as produções sobre amadurecimento (coming-age) reforçaram essa visão, fazendo com que seu público imaginasse que a vida decorria como os roteiros apresentavam, afinal de contas que menina nunca cogitou que o ensino médio fosse badalado como em “Gossip Girl” ou “Meninas Malvadas”, ou não sonhou em vivenciar um dia como o dos personagens de John Hughes (“Clube dos Cinco”, “Curtindo a Vida Adoidado”)?
Nos últimos anos, contudo, temos sentido a presença de obras mais realistas em relação ao cotidiano feminino no ensino médio, oferecendo um recorte mais amplo e rico sobre essa fase. Duas obras me chamaram atenção dentro desse contexto: ‘Fora de Série” (2019), de Olivia Wilde e “Moxie: Quando as Garotas Vão a Luta” (2021), de Amy Poehler. Em ambas, temos adolescentes autodeclaradas feministas e que estão em processo de reconhecimento de seu lugar no status quo, tanto para si quanto para a sociedade secundarista.
O posicionamento delas nos oferece um vislumbre sobre o movimento e introduzem questões feministas que são pertinentes a convivência feminina durante toda a nossa jornada. Dentre eles, cinco elementos nos fazem ter uma compreensão sobre como o feminismo se organiza:
Sororidade
Um dos elementos primordiais para a construção da identidade feminina é a sororidade. Por muitos anos, as produções culturais se basearam no conflito entre mulheres para formularem suas tramas; a presença de rivalidades era o carro chefe de filmes voltados para o público feminino. Contudo, roteiros que priorizam um comportamento não julgador entre elas, buscando a união, independentemente da situação que se encontre, eles tem ganhado espaço e mostrando casos verossímeis de relacionamento entre mulheres.
Em “Fora de Série”, por exemplo, temos personagens que se encaixam em estereótipos competitivos, mas que, no filme, subvertem essas expectativas. O roteiro se preocupa em mostrar como as protagonistas precisam quebrar essas ideias pré-concebidas sobre as outras moças que não fazem parte de sua bolha e, perceba, o arco de redenção da dupla se encontra justamente nesse ponto. Elas precisam entender que Triple A (Molly Gordon), Gigi (Billie Lourd), Ryan (Victoria Ruesga) são tão capazes quanto elas de entrar numa faculdade de elite, apesar de não terem o mesmo comportamento.
A parceria da dupla também é marcada pela troca de afetos e elogios como “quem te permitiu ser tão linda? Quem permitiu que você me deixasse sem fôlego?”, há tanta combinação e lealdade em ambas que evidenciam como poderia ser o padrão de amizades saudáveis. Algo semelhante pode ser visto em “Moxie”, com a relação afetuosa entre Vivian (Hadley Robinson) e Cláudia (Lauren Tsai), mas, principalmente, na admiração que a protagonista nutre por Lucy (Alycia Pascual Pena), o que desencadeia toda a luta feminista na produção.
Representatividade e diversidade
Gênero, raça e identidade são três pontos discutidos de forma leve em “Moxie” para trazer à tona a questão da representatividade. O roteiro utiliza situações comuns em sala de aula, mas que encontram reverberações sociais, principalmente dentro do twitter e da bolha acadêmica.
Em certo momento, enquanto discutem as leituras obrigatórias, Lucy questiona os critérios para a escolha das literaturas, tendo em vista que a lista só contempla homens cis, brancos e ricos. O roteiro de Dylan Meyer, Jennifer Mathieu e Tamara Chestna é inteligente em colocar a resposta padrão para essa pergunta e oferecer uma contraproposta mais interessante ainda. O problema não se deposita na qualidade das obras, mas na diversidade de seus autores.
Quando bell hooks fala sobre a formação do olhar negro, por exemplo, deixa claro a importância de termos autores que abracem a negritude. Da mesma forma que Adichie nos oferece uma concepção longe dos padrões ocidentais para que compreendamos a formação sociocultural africana. Representatividade e diversidade tem que ver com isso: colocar em tela narrativas que mostrem o real, com figuras e símbolos que se aproximem daquele fator que se busca retratar.
Ainda que falhe por oferecer o protagonismo para uma mulher branca, o filme de Poehler ganha pontos por ter um elenco miscigenado. Temos personagens negras, de origem latina e asiática, deficientes físicos e uma menina trans, além de um interesse romântico longe dos padrões europeus. E todos eles se juntam para buscar melhorias conjuntas e dar corpo e voz ao movimento, é sobre isso que trata representatividade, também.
Interseccionalidade
A presença da diversidade na trama é o que nos permite pensar a questão de interseccionalidade. Em um diálogo entre Vivian e sua mãe (interpretada por Poehler), a matriarca aponta a falta de pluralidade dentro do feminismo, o que é apresentado no filme como ruídos comunicacionais entre as meninas.
É preciso compreender que, devido a multiplicidade de características e fenótipos femininos, as opressões de gênero, classe e raça interferem de formas distintas na vida de cada mulher – o curta “Carne”, de Camila Kater, é uma ótima opção para imergir na questão. Por ser um movimento que busca a igualdade e equidade entre gêneros, o feminismo precisa considerar como esses fatores diferentes atingem seu público-alvo.
Wilde consegue aprofundar essa questão melhor em sua trama por meio de Amy (Kaitlyn Dever) que enfrenta dilemas internos por ser uma adolescente lésbica em processo de autoaceitação. Nas duas produções, contudo, o desenvolvimento das personagens femininas – observando sob este aspecto – suscita reflexões acerca do privilégio que garotas brancas e padrões possuem quando decidem começar uma revolução.
Cabe então a crítica de que poderia haver um tempo de tela maior as outras personagens e explorar outros tipos de feminismo como o negro e gordo, por exemplo, e dar visibilidade a narrativas dissidentes e pouco retratadas na sétima arte.
Sexismo
Como já foi dito, desde muito cedo, as meninas são postas em uma redoma. Há uma frase de Shakespeare em “Hamlet” que marca isso: “Fragilidade, teu nome é mulher!”
O sexismo está presente em todos esses momentos, claro que, com a popularização do movimento feminista e o acesso a informação pela parte das mulheres, esse tipo de comportamento se tornou ultrajante e discriminado, contudo, ainda há lugares em que a sociedade patriarcal consegue silenciar esse combate ao preconceito. Infelizmente, o ambiente escolar é um deles.
O comportamento do professor de literatura (Ike Barinholtz) e da diretora da escola (Marcia Gay Harden) em “Moxie” comprovam isso. Tanto o privilégio ofertado ao personagem de Patrick Schwarzenegger quanto aos comentários depreciativos em sala de aula, culminando na expulsão de uma aluna pelo seu decote, ofertam exemplificações de como essa atitude está presente no cenário de formação social. Em um momento delicado da vida de qualquer pessoa como o ensino médio, é necessário que os educadores não desviem de temas polêmicos, como assédio e discriminação de gênero, e saibam como abordá-los sem despertar gatilhos.
Introdução a cultura feminista
“Moxie” ainda apresenta outro braço do feminismo: movimento punk feminista dos anos 1990. Vivian encontra uma caixa de memórias do período que sua mãe integrou uma banda desse estilo, servindo-lhe como inspiração para criar o Moxie e enfrentar o sexismo na escola.
Essa ala do feminismo expressava, por meio da música, de encontros e fanzines; seus pensamentos em relação a temas importantes como o patriarcado, a sexualidade, o empoderamento feminino, violências e abusos sofridos pelas mulheres. É interessante a forma como Poehler introduz esse processo histórico-social e o resgata na contemporaneidade.
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Todos esses pontos nos fazem ter uma compreensão das causas que organizam o feminismo e de como a nossa luta está presente desde cedo. Eles também nos aproximam do movimento e nos fazem afirmar o que Adichie já dizia:
Sejamos Todos Feministas!