Martin Scorsese e Robert De Niro/Leonardo Di Caprio, François Truffaut e Jean-Pierre Léaud, Pedro Almodóvar e Penélope Cruz: num mundo ideal, esses “cases de sucesso” seriam o modelo para qualquer relação saudável entre diretores e atores, numa troca de talentos que colabora tanto para a carreira de um quanto para a do outro.

Mas se relacionamentos em geral já não são fáceis para ninguém, imagine quando ator e diretor se encontram num set de filmagens, sob a pressão do sucesso de um filme em jogo, num processo em que ambos têm suas demandas, envolvidos numa espécie de dança que cada um tenta conduzir ao mesmo tempo. Se nem sempre essa relação se desenvolve de forma amigável, até que ponto um diretor pode exigir do seu elenco? Vale a pena extrapolar os limites dessa relação profissional só para tentar extrair a melhor atuação possível? E quando a relação se torna simplesmente abusiva?

Porrada, câmera e ação

Piores diretores para se trabalhar: Stanley Kubrick e James Cameron

Stanley Kubrick era obcecado em ter o absoluto controle de seus filmes: em O Iluminado (1980), Shelley Duvall foi obrigada a filmar 127 vezes seguidas a cena com o taco de beisebol, e, anos depois, reclamaria da exaustão; já De Olhos Bem Fechados (1999) levaria 400 dias para ser filmado, dois desses dias dedicados apenas a um take de Sydney Pollack entrando num escritório. Para O Garoto (1921), Charles Chaplin filmou uma média de 53 takes para cada tomada. James Cameron é tão conhecido pela tirania no set que seus funcionários passaram a usar uma camiseta dizendo “Você não pode me assustar. Eu trabalho para James Cameron”.

Casos como esses mostram que, no mundo do cinema, há uma linha tênue entre direção e obsessão, pela qual, no entanto, grandes cineastas passam sem problemas: afinal, faz tudo parte da determinação de elevar a produção aos maiores níveis possíveis de qualidade. Em um artigo da BBC de 2014, por exemplo, alguns especialistas defendem que os melhores diretores são ditadores, e trata-se de uma “obsessão saudável”. Afinal, o que seria dos atores sem um “empurrãozinho”?

Zeudi Souza, realizador audiovisual/diretor/preparador de elenco amazonensePara o realizador amazonense Zeudi Souza (Perdido, No Rio das Borboletas), que também já trabalhou como preparador de elenco em produções locais como Aquela Estrada (2016), esse conflito entre ator e diretor é necessário para a construção dos personagens, mas só até certo ponto. “Ainda temos uma visão de que o trabalho do ator é o de decorar o roteiro, quando isso corresponde somente a 10% do trabalho. Na verdade, é um laborioso trabalho psicológico das verdades do ator conflitadas com as verdades dos personagens, e como a verdade é vista pela ótica do diretor, que é a mola mestre desse processo. Assim, nunca vai haver uma harmonia sem que haja o sacrifício”, afirma Zeudi. “Em um set, a cabeça do diretor é a que mais está ligada intimamente ao universo do roteiro, e todas as suas leituras realizam a construção daquele universo. Ou o ator está 100% seguro que detém em si todas as informações necessárias para trazer à tona a personagem, ou ele pode falhar, e a partir dessa falha o diretor abusa psicologicamente para que ele reaja às emoções desejadas”, completa.

O problema parece ser quando esse comportamento ultrapassa os limites e se torna simplesmente sádico. Alfred Hitchcock, por exemplo, ficou conhecido não só pelos seus clássicos do suspense, mas também pelo comportamento potencialmente misógino com suas atrizes: em Os Pássaros (1963), o britânico fez Tippi Hedren passar por maus bocados ao simplesmente lançar aves reais em cima da atriz em uma cena. O pânico é real: Tippi realmente sofreu cortes e arranhões por conta dos pássaros. Enquanto isso, Werner Herzog apontou uma arma para Klaus Kinski para impedi-lo de largar as gravações de Aguirre, a Cólera dos Deuses (1972) – e ainda cogitou queimar sua casa. O dinamarquês Lars Von Trier maltratou tanto Björk em Dançando no Escuro (2000), que ela sumiu do set por dias e supostamente comeu um suéter de tanto estresse. Nicole Kidman também foi levada aos extremos por ele numa discussão acalorada nas filmagens de Dogville (2003). Já no caso de David Fincher, não são só seus personagens que são manipuladores e, por vezes, cruéis: em Zodíaco (2007), Jake Gyllenhaal foi obrigado a filmar a mesma cena inúmeras vezes, sendo levado ao choro, enquanto Robert Downey Jr. deixou garrafas de urina espalhadas pelo estúdio em protesto à ausência de intervalos para ir ao banheiro.

Werner Herzog e Klaus Kinski

Werner Herzog e Klaus Kinski: uma história de amizade e trabalho em pé de guerra

Entre os casos mais recentes, o americano David O. Russell é um perfeito exemplo de tudo que há de ruim (inclusive os filmes, cof cof) numa só pessoa. Nas filmagens de Três Reis (1999), Russell humilhava e gritava com seus subordinados, levando um deles a chorar. Em uma briga com um figurante, Russell partiu para a agressão física – e George Clooney teve que intervir. O ator hoje lembra que o estresse quase o levou a matar o diretor, e que jamais trabalharia com ele novamente. Em Trapaça (2013), Russell fez a vida de Amy Adams um inferno tão grande que Christian Bale (que também tem lá seus problemas com ego), teve que mandá-lo parar. Em uma entrevista à revista britânica GQ, Amy contou: “Eu estava realmente devastada no set. Quer dizer, não todos os dias, mas na maioria. Jennifer [Lawrence] não tolera esse tipo de coisa. Ela é como Teflon. E eu não sou Teflon. Mas eu também não gosto de ver gente sendo tratada mal. Não é ok para mim. A vida é mais importante do que os filmes”.

Quer mais uma amostra de como é trabalhar com Russell? Nas filmagens de Huckabees – A Vida é Uma Comédia (2004), foi a vez de Lily Tomlin sofrer nas mãos do diretor, e a briga foi registrada num vídeo vazado:

Sérgio Andrade, diretor de A Floresta de JonathasSérgio Andrade, diretor de A Floresta de Jonathas (2012) e Antes o Tempo Não Acabava (2016), preza pelo diálogo para evitar situações que cheguem a extremos como esses. “É muito importante ouvir o que o elenco tem a dizer e não simplesmente impor a sua vontade enquanto diretor. O diálogo salva qualquer briga. Não seria um conflito, mas uma dialética. O ator Anderson Tikuna, de ‘Antes o Tempo Não Acabava’, por exemplo, sabia que a missão dele seria árdua, um personagem intenso com contradições que perpassavam pela sua própria identidade indígena, mas eu e Fábio [Baldo, codiretor] conversamos exaustivamente com ele (assim como com o elenco todo). Anderson iniciou a filmagem quando ficou claro que nenhuma das partes se sentiria abusada ou diminuída e que o profissionalismo deveria ser nossa bandeira. O que houve foi uma harmonia e uma entrega com resultados”, conta o realizador. Ele lembra também a importância do trabalho do preparador de elenco para a produção de um filme. “Eu particularmente gosto muito da figura do preparador de elenco, principalmente aqui em Manaus, que não tem tradição de ajustar seus elencos para a linguagem do cinema. O preparador é como mergulhador, uma sonda nos mistérios da atuação, e filtra as emoções de todas as partes”, completa.

Os fins justificam os meios?

No Festival de Cannes de 2013, o diretor Abdellatif Kechiche e as atrizes Adèle Exarchopoulos e Léa Seydoux eram só sorrisos, beijos e abraços ao apresentarem e serem premiados por Azul é a Cor Mais Quente, ovacionado pelo público e vencedor da Palma de Ouro naquele ano. Mas a produção do filme passou longe do carinho do tapete vermelho: em entrevista ao The Daily Beast, as atrizes contaram que a experiência foi “horrível”, incluindo as famosas cenas de sexo e a briga no restaurante. Seydoux contou que, em alguns momentos, se sentiu como uma prostituta; já Exarchopoulos descreveu que, em uma das gravações, foi atingida continuamente por Seydoux a mando de Kechiche, até ficar com marcas. Em sua defesa, Kechiche declarou que “falar sobre o sofrimento do ator é algo que me faz rir – em uma profissão tão bela, onde você está criando através de suas emoções, de seu corpo – para mim, não há nada de sofrimento”.

Abdellatif Kechiche, Adèle Exarchopoulos e Léa Seydoux no Festival de Cannes 2013

Só amor em Cannes

Controvérsias à parte, a fala de Kechiche é também a opinião de muita gente sobre a polêmica: em nome da arte, não há sofrimento – ou, se há, ele vale a pena. Especialmente no caso de diretores homens e de renome, mesmo os casos de abuso emocional ou até mesmo físicos são muitas vezes relevados pela indústria – vide o caso de David O. Russell, cuja carreira não parece ser afetada nem um pouco pelas polêmicas. Curiosamente, diretoras mulheres não parecem ter esse mesmo passe-livre de “gênios difíceis, mas grandes autoras”: Catherine Hardwicke (Aos Treze, Crepúsculo) e Lynne Ramsay (Precisamos Falar Sobre Kevin), por exemplo, já foram rotuladas de difíceis de trabalhar e demitidas de produções por seus comportamentos.

Para Zeudi Souza, a resposta para essa aparente falta de retaliação está no retorno comercial da indústria. “A indústria cinematográfica é uma indústria muita milionária. Não é que ela encara isso como normal, mas esses diretores são tão renomados e trazem um retorno financeiro tão alto que é melhor encarar isso como parte do jogo. Olha só nomes como o James Cameron: o diretor não é um amor de pessoa (quando o conheci, ele foi rude), ele é quase unanimidade quando o critério é ser carrasco, mas, para a indústria, ele é um dos caras que mais trazem lucro. Outro diretor que é carrasco é o Michael Bay, que deixou em trauma a atriz Megan Fox, mas ele por um tempo foi o rei das bilheterias, e por aí vai. Diretores como Lars Von Trier, Hitchcock, David Fincher, por trás de toda loucura desses caras existe uma genialidade em fazer filmes”, afirma o realizador.

Jéssica Amorim, em "O Que Não Te Disse"

Do lado dos atores, Jéssica Amorim (A Menina do Guarda-Chuva, O Que Não Te Disse) também acredita no diálogo como forma de resolver possíveis conflitos nas filmagens. “Felizmente, na minha curta experiência, não tive nenhum tipo de conflito significativo com os diretores que trabalhei”, conta a atriz. “Entretanto, acredito que talvez isso possa vir a acontecer devido a uma falta de confiança entre os dois profissionais. Quando não se pode ser honesto com o outro sobre o que se pede e o que se oferece, podem acontecer mal-entendidos ou manipulações para que a mise-en-scène ocorra da forma planejada pelo diretor”.

Sérgio Andrade concorda: “Acho que a atividade cinematográfica, como outra similar que lida com o trabalho coletivo, deve ser conduzida com respeito, harmonia e tranquilidade por seus atores e diretores. Hoje em dia, é meio complicado tolerar ofensas e destemperos gratuitos. Se você sente que há um descompasso ou uma desavença que aumenta, é preciso zerar tudo e resolver esse clima até que tudo fique harmônico pra começar as filmagens. ‘Pítis’ podem ocorrer, mas há que haver proteção pra isso”.