Fevereiro de 1977. A árdua filmagem de Star Wars (o primeiro) tinha acabado, e o filme entrava na reta final da pós-produção. O diretor, George Lucas, chamou alguns colegas mais chegados – gente como Steven Spielberg, Brian De Palma e John Milius, jovens cineastas como ele, e igualmente empenhados em bagunçar o coreto do cinema americano, no que se convencionou chamar, retrospectivamente, de geração Nova Hollywood – para ver o que eles achavam.

Milius ficou calado. De Palma soltou os cachorros sobre Lucas, disse que o filme era uma bobagem, e que o texto de abertura – aquelas letras voando memoravelmente sobre o espaço sideral – iriam afugentar a plateia antes que a trama sequer começasse. Só Spielberg curtiu. “George, está ótimo. Vai fazer 100 milhões de dólares”. Até a produtora de Lucas, Gloria Katz, presente à sessão, estava cética. “Steven é um idiota”, ela teria comentado.

(Em defesa de De Palma, é justo dizer que o texto inicial era mesmo uma bagunça, e que ele iria ajudar Lucas a deixá-lo nos trinques)

O episódio acima é descrito pelo jornalista Peter Biskind em Easy Riders, Raging Bulls: Como a Geração Sexo-Drogas-e-Rock ‘n’ Roll Salvou Hollywood (1998), o compêndio definitivo sobre a louca Hollywood dos anos 70, e os pirados que a compunham. À luz do impacto duradouro de Star Wars sobre a indústria – que o diga a pujante estreia de sua sétima continuação – e sobre o próprio mapa cultural do Ocidente neste século, pode-se dizer que Spielberg, afinal, não era um idiota. O que é ótimo para Lucas. Ou será que não?

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Nascido em Modesto, Califórnia, em 1944, Lucas é um baby boomer, um dos milhões de americanos nascidos no final da Segunda Guerra Mundial, que mais tarde iriam popularizar a televisão, o jeans e o rock ‘n’ roll – e, no processo, revolucionar os costumes e as artes no mundo inteiro, mesmo que nem sempre para melhor (ou não teríamos Justin Bieber, Miley Cyrus e Kim Kardashian).

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Como tal, George viveu todas as pequenas alegrias e angústias das cidades interioranas dos Estados Unidos (que ele capturaria tão bem em Loucuras de Verão), bem como a profunda insatisfação pela permanente modorra cultural. No caso de George, esse sentimento era agravado por sua própria fragilidade física, que o levou a se tornar um adulto travado e tenso, obcecado com trabalho.

O consolo para as humilhações da escola (e de casa – seu pai, um típico WASP [anglo-saxão branco protestante] via nele um inútil, um fracote, que jamais ganharia dinheiro) não eram os filmes. Por incrível que pareça, durante a maior parte da juventude, Lucas foi torcedor incondicional da TV. A paixão pelo cinema só viria na época da faculdade, quando Lucas foi para a USC (Universidade do Sul da Califórnia) e se deixou engolfar pela onde de inquietude e inovação que essa arte inspirava nos primeiros anos 60.

Era a época da Nouvelle Vague francesa, de Godard e Truffaut, do auge de Fellini, Antonioni e Bergman, da explosão dos cinemas novos ao redor do mundo. Mas os nomes que realmente falavam ao coração de Lucas eram mestres da expressão visual, gente como Stanley Kubrick, Akira Kurosawa e Sergei Eisenstein. A formação de cidade pequena, a revolta contra o pai (que se converteria num arraigado antiautoritarismo), o contato com grandes criadores visuais: a receita estava quase no ponto, restando apenas um ingrediente decisivo: o encontro com Francis Ford Coppola.

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Muito antes de O Poderoso Chefão, Coppola era mais um novato, batalhando oportunidades na indústria. Com um carisma avassalador (quem mais conseguiria pôr Fred Astaire em locação, como ele fez em O Caminho do Arco-Íris?) e um talento equivalente, o diretor era também um tenaz e obstinado empreendedor: seu sonho era fundar um estúdio alternativo, uma espécie de comuna cinéfila, que agregaria gente de talento mas desprezada pelas grandes empresas, e viabilizar a ideia de um cinema pessoal, autoral, que se opusesse à junk food milionária da indústria.

Lucas e Coppola eram quase irmãos: o tímido e franzino George era o complemento exato do grandalhão e expansivo Francis. A fagulha dessa amizade resultaria na criação da produtora American Zoetrope em 1967. Para seu primeiro projeto na companhia, Lucas decidiu retomar uma experiência da época da USC, o curta Labirinto Eletrônico: THX 1138 4EB, uma fantasia futurista sobre um mundo onde as máquinas vigiam cada passo da humanidade (ou seja, exata).

Com um novato Robert Duvall à frente, o longa THX 1138 (1971) não foi bem o que se esperava: a narrativa era difusa, oblíqua, quase hermética, e o visual fascinante não compensava o tom distanciado, frio, dir-se-ia umbiguista de seu autor. Um fracasso, por algum motivo, e um que George não engoliu bem: o estúdio que iria distribuir o filme, a Warner, detestou a criação de Lucas, e tentou salvar THX cortando alguns minutos. A tática, claro, não deu certo, e o filme foi direto para o oblívio.

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Como se não bastasse, o fracasso provocou ainda a revogação do acordo entre a Zoetrope e a Warner: a empresa alegou que os projetos de Coppola e Lucas (entre os quais Apocalypse Now, que à época era incumbência de George) estavam longe de ser a maravilha anunciada, e exigiu a devolução do dinheiro investido na empreitada – módicos 300 mil dólares. O sabor amargo de todas essas experiências (além da frustração com Coppola, que Lucas acreditava não ter defendido o seu filme) provocaria um racha entre os dois realizadores, além de instilar em George a vontade de ganhar dinheiro suficiente para se ver livre dos estúdios.

Só havia um problema: o que o retraído e melancólico George poderia fazer para angariar as simpatias do público? Como um homem que se definia como um artista experimental, pouco afeito a filmes narrativos, conseguiria provocar comoções em massa? Na verdade, Lucas já trazia todas as respostas dentro de si.

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Com uma história que era basicamente a sua em garoto, Loucuras de Verão (1973) mostra o dia da formatura de quatro rapazes em Modesto, CA, todos às voltas com as primeiras angústias da vida adulta. Com um elenco que reunia vários futuros astros, como Richard Dreyfuss (Contatos Imediatos de Terceiro Grau), Harrison Ford e até o futuro diretor Ron Howard, Loucuras, sim, valia o quanto pesava: um retrato encantador, elegíaco, do final da adolescência (e da inocência), ambientado no início dos anos 1960, logo antes da explosão do Vietnã e de todos os sacolejos cósmicos daquela década. Mais do que um filme para provar que George podia, sim, agradar ao público, Loucuras revelava a intuição do artista sobre a época: todo o experimentalismo e ousadia da Nova Hollywood tinham varrido a diversão do cinema, e afugentado o público que via filmes em busca de entretenimento e escapismo. E, afinal, qual o problema de se fazer um filme divertido, positivo, empolgante?

Lucas deve ter levado bem a sério essa pergunta, porque passaria os quatro anos seguintes desenvolvendo uma saga de apelo literalmente universal: com Star Wars: Guerra nas Estrelas (1977), Lucas dava vários passos gigantescos – siderais – em sua carreira.

Em toda a sua simplicidade, seus arquétipos, até no uso das cores (o todo-branco Luke versus o todo-preto Vader), Star Wars era a essência do cinema de aventura. Retomando um filão glorioso da Hollywood clássica – as histórias de Buck Rogers (por sinal, citado no início de THX) e Flash Gordon, os filmes de Errol Flynn, os seriados do Fantasma e do Cavaleiro Solitário –, Lucas reformatou o gênero para a audiência da Nova Hollywood, ao acrescentar um subtexto político (Vader, o idealista corrompido pelo poder, era uma versão de Richard Nixon) e, sobretudo, ao energizar a trama com os efeitos descobertos por Kubrick para 2001: Uma Odisseia no Espaço (1968) e, em menor grau, a montagem elaborada, eisensteiniana.

Mas falar dos triunfos de Star Wars, hoje, é chover no molhado. À época, a ficção científica continuava tão em baixa quanto em 1968 (ano de 2001), a anos-luz do furor dos anos 1950, apesar das incursões eventuais de gente como Robert Wise (O Enigma de Andrômeda), Andrei Tarkovski (Solaris) ou o próprio Godard (Alphaville). Era um cinema “rasteiro”, de “entretenimento”, proibido a diretores “sérios”. E a trama de Lucas, confessadamente simples, de apelo infanto-juvenil, só serviu pra ridicularizar ainda mais seu criador.

A filmagem foi um pesadelo: na Inglaterra, o distante e travado George tinha arengas quase diárias com a equipe técnica. Os atores também sofriam com os diálogos ruins e a crônica falta de orientação do diretor. Para completar, os efeitos especiais desenvolvidos pela equipe inglesa (chefiada por John Dykstra, assistente do mago Douglas Trumbull em 2001) avançavam a passo de tartaruga e sangravam milhões de dólares, provocando mais discussões. Acrescente as pressões do estúdio sobre os estouros de orçamento e dá pra entender por que Lucas não quis dirigir outro filme pelos próximos 22 anos. Mas o fato é que, contra todas as pressões em contrário, Star Wars se impôs como uma virada radical no cinema americano, além de fazer uma das maiores bilheterias de todos os tempos – só na época, quando arrasa-quarteirões históricos como O Poderoso Chefão (1972) e O Exorcista (1973) fechavam na marca dos 80 milhões de dólares, a ópera espacial de Lucas fez 100 milhões em assombrosos três meses.

Falar em “virada” não é exagero. Mais do que revitalizar o cinema de aventura, Star Wars criou o padrão para o tipo de filme que se chamaria de blockbuster nas décadas seguintes: promoção massiva na televisão, tramas simplificadas, de olho no público adolescente, doses maciças de efeitos especiais, e o principal: exploração ad aeternum da marca, através de brinquedos e gadgets. Passado tanto tempo (e tanta exploração), o incrível é que o filme de Lucas conserve intacto o fascínio, e continue a cativar crianças cuja dieta anabolizada é composta de Transformers e Vingadores.

O sucesso de Star Wars foi tanto que avassalou a carreira de diretor de Lucas. A seu modo, ele continuaria dirigindo: ao comandar o trabalho de outros cineastas sobre seus roteiros (como as catárticas continuações de Star Wars na década de 80, ou suas tentativas de emplacar novo material, como Willow – Na Terra da Magia [1987] e Howard, o Super-Herói [1986], dois fiascos de crítica), ele se mostraria o verdadeiro autor desses filmes. E ainda teve fôlego para emplacar outra trilogia de extraordinário sucesso: Indiana Jones. Os três filmes do arqueólogo mais famoso do cinema (quatro, se você curtiu o fraco O Reino da Caveira de Cristal, lançado em 2008) foram colaborações com Steven Spielberg, seu solitário defensor na débâcle de Star Wars. Mas o trauma de suas experiências em Hollywood e, principalmente, a expectativa sobre a sua carreira pós-Luke & companhia o levaram a se afastar das câmeras por toda a década de 1980. Lucas agora podia encarar o pai frente a frente, com a convicção robusta de seus milhões; mas será que poderia encarar o jovem realizador ambicioso de apenas seis anos antes, e dizer que valeu a pena?

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Lucas se dedicou a financiar avanços tecnológicos da indústria, como o sistema de som THX, que impôs o estéreo como formato dominante nas salas de cinema, e a empresa de efeitos especiais Industrial Light & Magic, que criaria os dinossauros de Spielberg em Jurassic Park: Parque dos Dinossauros (1993) e dominaria os demais megafilmes dos 90, além de originar uma divisão respeitada de games (a LucasArts) e outra de animação, esta capaz de fazer sombra à própria matriz: nada menos que a Pixar (claro que a Pixar só viraria o estúdio de Toy Story depois de ser comprada por Steve Jobs e entrar na órbita da Disney – o que não diminui o pioneirismo de Lucas).

Decidido a fazer as coisas diferente da maligna Hollywood, ele também bancou projetos desacreditados de outros cineastas, como Kagemusha – A Sombra do Samurai (1980), de Akira Kurosawa, Labirinto – A Magia do Tempo (1986), de Jim Henson, e Tucker: Um Homem e seu Sonho (1988), do velho amigo Coppola, além da animação Em Busca do Vale Encantado (1988), de Don Bluth. Mas uma série de projetos originais naufagados, como os já citados Willow e Howard, desencorajaram Lucas de seguir investindo em material novo. Seu destino, como o de Luke Skywalker, já estava traçado: ele voltaria a Star Wars.

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A malfadada trilogia de A Ameaça Fantasma (1999), O Ataque dos Clones (2002) e A Vingança dos Sith (2005) tem tudo das inovações tecnológicas dos anos 80 – e nada do encanto da primeira trinca. Mas serviu pra comprovar que Lucas é, sim, um criador visual: com suas batalhas megalomaníacas e seus duelos ultracoreografados, sua orgia incessante de cor e ruído, o diretor criou a noção de espetáculo visual para a garotada de hoje – uma lição que Michael Bay e os estúdios Marvel replicam à maravilha, afastando, com isso, quem busca no cinema uma experiência cativante – e produzindo um espelho perverso das críticas que o jovem diretor fazia ao negativismo dos filmes da Nova Hollywood.

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Hoje, para se ver livre de sua criatura, Lucas cedeu a franquia à Disney, e promete voltar aos filmes experimentais. Ainda produz à beça, principalmente como produtor e roteirista (seu último trabalho na dupla ocupação foi o desenho Estranha Magia, desse ano, que foi espinafrado pela crítica). Mas, por baixo de todo o sucesso e aclamação acumulados nessas últimas décadas, sobra uma colossal frustração do garoto da USC, impedido de dar vazão a seu lado mais ousado e artístico pela força do vil dinheiro.