O mundo do estrelato é tão cíclico que não dá para contestar que um filme como “Nasce Uma Estrela” ganhe novas versões de tempos em tempos. A cada releitura, a história principal muda, mas algo sempre era constante: o foco do drama era na jovem Esther (Janet Gaynor/Judy Garland/Barbra Streisand) e todo o percurso por ela percorrido até o estrelato, ao mesmo passo em que o protagonista masculino (Fredric March/James Mason/Kris Kristofferson) entra em uma espiral de autodestruição que culmina em seu fracasso profissional. A quarta versão da história com Lady Gaga e Bradley Cooper de protagonistas mantém essa essência, mas, de certa forma, inverte o protagonismo para contar, com profundidade, como o vício e o “poder fazer tudo” (que a fama parece apresentar) pavimentam o caminho tortuoso de grandes artistas.

Mais de 40 anos se passaram entre a então última versão de “Nasce Uma Estrela” e essa que está nos cinemas agora. De lá pra cá, fenômenos como Michael Jackson, Whitney Houston, Britney Spears e Amy Winehouse surgiram e tiveram cada respiro acompanhado por fãs, pela imprensa e por curiosos ávidos em ver os inevitáveis passos em falso. Dos nomes citados na frase anterior, apenas Britney Spears está viva, e por pouco, já que, há apenas 10 anos, sua vida virou praticamente um reality show acompanhado com a mesma atenção e até com o mesmo júbilo de quem espera pelo próximo capítulo da novela das oito.

A vivência disso é importante para entender o papel do novo “Nasce Uma Estrela” na atual conjuntura do mundo pop. Na teoria, era um daqueles filmes que poderia ser um desastre: estrela pop interpretando estrela pop em ascensão (alguém lembra de ‘Glitter’?) e um diretor estreante que também atua, escreve o roteiro e até assina músicas da trilha sonora. Junta-se a isso uma história que muitos consideram batida. Receita para desastre? Nem tanto. O que se vê no filme de Bradley Cooper é uma subversão a todos esses elementos citados neste parágrafo em prol de uma história que não poderia soar mais atual.

Agora, Esther vira Ally. Sem sobrenome, apenas Ally. Uma mudança que poderia parecer besta, mas não o é, já que Hollywood não parece mais ter o costume de fazer suas estrelas mudarem de nome, prática que tem papel importante nas duas primeiras versões da história. Já o Jackson de Bradley Cooper conserva do Norman Maine apenas o sobrenome (e os vícios, claro). A exemplo do filme de 1976, o pano de fundo da história é o mundo da música – escolha esperta, já que as armações e tretas desse campo do entretenimento sempre rendem filmes interessantes (veja, por exemplo, o ótimo ‘Mesmo Se Nada Der Certo’, de John Carney).

No filme, Jackson é um cantor de folk/rock/country bem sucedido que vê Ally pela primeira vez em um bar de drag queens. Lá, ela canta “La Vie En Rose” e encanta o artista. O encantamento é mútuo e os dois logo começam a fazer música juntos. O relacionamento amoroso também não demora a aparecer. Nesse meio tempo, Ally finalmente perde o medo, canta para multidões em shows de Jackson e chama a atenção da indústria que sempre a rejeitou. Ela vira uma popstar e o amado, ao contrário das outras versões do filme, não experimenta o fracasso profissional per se, mas se vê cada vez mais refém do vício em álcool e drogas ilícitas.

It’s only rock and roll but I like it

“Nasce Uma Estrela” é um filme enérgico. Cooper já disse em entrevistas que concebeu o filme de modo a colocar o público em cima do palco nos shows de Ally e Jackson e é isso o que acontece. É quase uma dança entre closes longos e quase invasivos, travellings que brincam com a profundidade de campo (a cena em que a protagonista chega ao backstage de um show do amado pela primeira vez é inebriante nesse sentido) e ângulos pouco explorados em filmes que mostram shows de rock. A artificialidade desse tipo de cena é sempre um revés em filmes sobre o mundo da música, mas aqui o que se vê é uma série de apresentações carregadas de naturalidade e visceralidade. O momento em que Ally entoa a belíssima “Always Remember Us This Way” por exemplo: pela primeira vez, ela é a estrela solo do show, com Jackson servindo de coadjuvante e, mesmo quando vemos Cooper, o que se destaca é o telão com a performance vibrante da protagonista, ao fundo. E que frescor é ver um filme sobre cantores onde eles não aparecem impecáveis, e sim suados e muito descabelados em cima do palco.

A excelência das cenas de palco se deve ao trabalho do diretor de fotografia Matthew Libatique. Das sombras que envolvem Jackson nos momentos mais difíceis às luzes que abraçam Ally, o filme praticamente conta a sua história por meio da imagem. Vale ressaltar também o uso das cores, não apenas nos números musicais, mas nas cenas dramáticas: o vermelho intenso que se estende até os cabelos da protagonista em dado momento consegue ser um sinal de alerta, um grito de socorro, um símbolo da intensidade da vida que Jackson levava e, claro, do amor entre os dois. Os figurinos também são fundamentais para o arco dramático, sobretudo de Ally: as cores sóbrias que vestia antes do estrelato vão ficando cada vez mais vibrantes ao passo em que seus sonhos se realizam (o dourado que usa em uma cena de consagração máxima não está ali à toa).

Já prepararam seus discursos para o Oscar?

Mas não dá para falar do filme sem tocar nos elementos principais: as atuações e as músicas. A grande expectativa era para saber se Lady Gaga teria um bom desempenho, mas não dá para dizer que seu ótimo trabalho como Ally é uma surpresa, afinal, a estrela sempre incorporou a atuação em suas performances musicais. Ainda assim, ela tem grandes momentos no filme, e eles não se resumem a suas belas interpretações em cima do palco: Gaga entende completamente o arco dramático de Ally e, como a mais experiente das atrizes, sabe brincar com as nuances da personagem. Não é exagero dizer que ela merece, sim, a indicação ao Oscar de melhor atriz no ano que vem.

No entanto, quem toma o filme para si, mesmo (em mais de um sentido, já que a obra é realmente dele) é Bradley Cooper. O ator tem grandes chances de entrar em 2019 para a companhia de Gary Oldman, Tom Hanks, Jeff Bridges e outros vencedores do Oscar, e, se isso acontecer, será justíssimo. É um trabalho que impressiona, pela composição (voz, visual, trejeitos) e, principalmente, pela entrega nas cenas dramáticas. Quando o longa tem uma queda de ritmo, em sua segunda metade, é na atuação de Bradley que ele resiste. E, claro, só ajuda o fato de que ele e Gaga têm muita química no palco e fora dele. Outro nome que merece reconhecimento é Sam Elliott. O ator tem um papel pequeno, mas fundamental para a história e divide com Gaga a cena mais bonita e melancólica do longa. Há, ainda, participações divertidíssimas das drag queens Shangela e Willam, mais conhecidas por participações bem polêmicas no ótimo reality show Rupaul’s Drag Race. Não deixa de ser um alento, em tempos tão preconceituosos, ver uma ode a esse público tão importante na carreira de divas pop como a própria Lady Gaga.

A trilha sonora é outro ponto que funciona muito bem neste “Nasce Uma Estrela”. Se a turma de Barbra Streisand estava pouco inspirada lá em 1976 e fez uma trilha bem aquém para um filme ambientado no mundo da música (a despeito de um Oscar de melhor canção para ‘Evergreen’, cafonérrima), o remake de 2018 tem vários petardos irresistíveis e que grudam na moda de algumas das canções mais icônicas da história do cinema. As canções compostas por Bradley para Jackson sintetizam o tormento do personagem, enquanto as músicas cantadas por Ally/Gaga são mais um testemunho do talento da artista, e, mais importante, carregam a carga dramática necessária para um filme desse porte. Os destaques ficam por conta da já citada “Always Remember Us This Way”, da balada à la Whitney Houston “I’ll Never Love Again”, e, claro, da canção-standard da história, “Shallow”, que une Jackson e Ally e transforma o filme em um grande concerto de estádio.

Parafraseando uma das músicas cantadas por Gaga e Cooper na trilha, “Nasce Uma Estrela” é música para os olhos. É daqueles filmes que provam que remakes podem ser bem-vindos, sim. Ao apresentar um novo ângulo para uma história que já é contada há mais de 80 anos, o drama mostra que o estrelato é cruel em qualquer era, seja a dos estúdios que podam suas atrizes à exaustão, seja a da internet, onde uma jovem consegue ficar famosa ao ter um vídeo gravado de qualquer jeito em um show. São camadas novas colocadas a cada versão, e, ao final desta, é difícil reduzir essa obra como um simples projeto de vaidade de uma diva pop. E que venham mais filmes de Bradley Cooper. E que venham mais filmes com Lady Gaga.