O filme é bem filmado. Tem cara de cinema. Tem jeito de cinema. Tudo parece estar no lugar certo. Mas alguma coisa te incomoda. Alguma coisa na tela. Difícil dizer o quê. Mas algo na imagem parece despertar uma reação alérgica em você. Um quê de artificialidade, talvez? Como se, paradoxalmente, tudo parecesse perfeito demais, liso demais.   

Ou talvez não seja isso. Talvez a imagem tenha um quê pálido. É, na verdade, escura, com ares de borrão. Falta vida, contraste, cor. Tudo é tão sem graça quanto aquela lingerie bege e manchada que você usa durante a semana. Por quê? Nesses dois casos, há fortes chances de que você esteja assistindo um filme rodado em digital.  

O VELHO EMBATE DIGITAL X PELÍCULA 

Crítico Will Sloan aponta “Avatar” como responsável pela revolução no modelo de exibição.

As lamúrias sobre a morte do cinema, quando não vêm atreladas à condenação das franquias e propriedades intelectuais, recaem sobre o velho debate entre filme (película) versus digital. Há um vídeo famoso que ilustra a questão. Trata-se de um compilado de declarações de dois “oponentes”: de um lado do ringue, Quentin Tarantino, que declara que a experiência cinematográfica em digital é, na verdade, apenas televisão em público; do outro, Roger Deakins, que canta louvores à rapidez e praticidade do novo formato.  

O argumento da “televisão em público” encontra ecos no crítico canadense Will Sloan. Desde que “Avatar” iniciou uma revolução no modelo de exibição – da projeção em35mm para os arquivos digitais – algo mudou na percepção do público. Costumava ser fato sabido por todos que a imagem do cinema era diferente da que você assistia em casa. Mas, pergunta o crítico: quando a imagem da sua TV 4k UHD tem exatamente a mesma resolução, peso e textura que a imagem projetada na tela grande, por que não ficar em casa?  

Uma forma de garantir alguma personalidade para a cara do seu filme, mesmo que ele seja (inevitavelmente) projetado digitalmente, é rodá-lo em película. Mas, afinal de contas, o que há de tão especial em um rolo de filme de cinema? Você não vai encontrar uma resposta fácil por aí. Os defensores da película incorrem em alguns chavões típicos nos seus discursos: as cores são mais ricas, a imagem tem mais textura (cortesia do grão que em maior ou menor grau recobre as imagens), o filme parece mais vivo.   

Tudo isso soa extremamente vago, de fato. Mas é também verdade. Um exemplo recente: aquele halo azul que as montanhas geladas adquirem em “Anatomia de Uma Queda”, o contraste com a brancura rósea do rosto de Sandra Huller: você não vai conseguir esse efeito em digital. Claro, nada te impede de gastar processamento com color grading e alguma sobreposição de grão. Mas o resultado nunca vai ser o mesmo.  

VESTÍGIOS DE LUZ E OS ZEROS 

Lista de indicados ao Oscar de Direção de Fotografia em 2024 traz quatro dos cinco finalistas rodados, pelo menos, parcialmente em película.

No cerne da questão, as diferenças entre os dois modos de captura são essas: rodar em película significa que a luz deixa uma impressão (um “vestígio” – daí os argumentos sobre a vivacidade) em um substrato material; já no digital, a luz é capturada pelo sensor da câmera e transformada em zeros e uns, antes de ser “retraduzida” na imagem que você vê na tela. De um lado, um processo físico-químico. De outro, informacional.  

Como tudo que é analógico, rodar em película gasta tempo e dinheiro. Não é eficiente – “eficiência” sendo a palavra de ordem no nosso neoliberalismo global. Daí que Hollywood, que como toda indústria, quer minimizar gastos e maximizar lucros, pulou com tudo na onda do digital. Pareceu por um momento que a película seria coisa do passado. Das grandes fabricantes de rolos de filmes, sobrou só a Kodak para contar a história.  

Mas como explicar a lista de indicados ao Oscar de Melhor Fotografia deste ano, em que quatro dos cinco contemplados foram rodados, pelo menos parcialmente, em película? Estaríamos voltando aos velhos tempos?  

UM NOVO FOCO 

Trabalho de Dion Beebe em “Miami Vice” é um dos raros casos em Hollywood de se usar o digital para além do óbvio.

A maledicência do digital não se dá apenas porque a imagem gerada a partir de um código binário é “feia” (geralmente é). Em uma palavra, a questão é a seguinte: foco. Se você está rodando uma cena em digital e não depende do estoque finito de rolos de película para capturar a ação, sua atitude tende a ser bem mais relaxada e descontraída. Do mesmo modo, tendo acesso em tempo real a um preview em alta qualidade do que sua câmera está capturando, você passará bem menos tempo planejando especificidades técnicas de antemão. Para não dizer nada da infinidade de retoques que se pode fazer na pós-produção. Ou seja: falta foco.  

É o famoso “resolve na pós”. O que é ótimo para os filmes feitos por comitê: as grandes franquias e blockbusters. Mais eficiente. Menos custoso. Mas também resulta em filmes feitos sem esmero. Filmes que têm sempre a mesma cara. São os exemplos que abriram o texto: aquele projeto em que tudo é perfeito demais, limpo demais. Ou então, escuro, morto, cinzento. “A Órfã 2” é um grande representante deste último.  

O que, francamente, é um baita desperdício do formato. Não é como se o digital não fosse capaz de deslumbrar. Basta ver o que James Cameron consegue fazer. Ou então, se voltarmos para o início da década de 2000, veremos os experimentos em digital de Michael Mann. Eu desafio você a encontrar outro filme que tenha a mesma cara de seu “Miami Vice”: Mann se aproveita ao máximo da sensibilidade do digital em baixa luminosidade; com o obturador aberto por mais tempo, ele reduz a abertura do diafragma, utilizando a profundidade de campo de um modo que seria literalmente impossível em película.   

Por isso que rodar em digital e tentar emular o visual da película é, francamente, um desperdício. Lamentemos, então, que o verdadeiro potencial desse novo formato só tenha sido vislumbrado por alguns poucos visionários. Por outro lado, é ótimo que isso se traduza em uma retomada do bom e velho filme (película) de cinema.   

Talvez, então, a “re”-popularização da película possa significar, quem sabe, uma tomada de consciência frente a todas as possibilidades artísticas dos zeros e uns.