No cinema brasileiro, é sempre interessante assistir a filmes policiais que, passados nessas bandas tropicais, apostam mais em tramas investigativas do que na troca de tiros em meio a uma favela carioca qualquer. Não que essa vertente não dê as caras em “A Suspeita” – a favela, o traficante, tudo isso também aparece aqui. Mas, como no recente “Águas Selvagens”, o longa tem como foco o trabalho detetivesco dos personagens – aqui, com resultado bastante superior àquele longa. 

Gloria Pires interpreta Lucia, uma comissária de polícia que se torna a principal suspeita do assassinato de um jornalista, justamente um crime que investigava. A coisa se complica, no entanto, porque Lucia foi diagnosticada com Alzheimer – o que, naturalmente, prejudica o trabalho de investigação. Assim, não só ela precisa lutar contra a doença degenerativa, como também deve descobrir a verdade sobre o crime para salvar a própria reputação. 

Lucia anota obsessivamente cada detalhe do seu dia: sozinha em seu apartamento, ela é rodeada por notas e lembretes que deixa para si mesma. Essa compulsão é justificada não só pela doença, mas também por conta do trabalho – que, como o filme nos diz (ao tentar apontar as pretensões temáticas de forma não tão sútil) envolve a articulação das memórias das testemunhas.

 interesse nos tempos mortos

Por um lado, essa opção do longa pela obviedade, já citada em relação ao escancaramento dos seus temas, também aparece sob a forma de uma câmera praticamente colada ao nariz de Glória Pires, acentuando a sensação de isolamento da protagonista; ou ainda, no motif dos reflexos distorcidos da personagem, aquele tipo de símbolo fácil que busca representar a psique cada vez mais frágil de Lucia. São escolhas batidas, que contrastam com o modo muito mais instigante pelo qual o diretor Pedro Peregrino articula o tempo – tanto nos planos que constrói com o diretor de fotografia Fabrício Tadeu, como no andamento da narrativa. 

É que, ao acompanharmos Lucia em longas tomadas onde nada acontece – Lucia caminhando pelos corredores, Lucia levantando da cama –, tomamos parte da experiência de uma mulher que vive quase como um sonâmbulo que, ao despertar fora de seu quarto, não lembra como foi parar ali. São os tempos mortos que parecem interessar a Peregrino: os momentos de espera, que seriam facilmente tidos como gorduras em outro thriller qualquer, aqui são mantidos, enquanto as cenas de ação convencionais são suprimidas. Os apagões de Lucia são absorvidos pela narrativa na forma como o filme evita a ação, avançando elipticamente na sua trama investigativa.

 SOLIDEZ AINDA QUE FALHA

Trata-se de uma escolha que, na maior parte do tempo, funciona. Vemo-nos genuinamente interessados sempre que “A Suspeita” decide apenas acompanhar a rotina silenciosa de Lucia. Nessas cenas, a presença de Gloria Pires dá conta do recado. Mas – e que me perdoe o júri do Festival de Gramado, de onde o filme saiu com o prêmio de melhor atriz –, Pires não consegue entregar tudo que o filme pede dela. Sempre que ela se lança em um diálogo, as falas soam engessadas, como se ouvíssemos não uma policial de meia-idade, mas uma atriz global veterana e esforçada. 

É verdade que o roteiro também tem a parcela de culpa. Há menções passageiras a eventos da vida da personagem, com direito a uma suposta grande revelação no clímax do filme, que, no entanto, nunca parecem ter o peso que deveriam. Sempre que parece que estamos prestes a ter algum insight sobre aquela mulher, o filme se limita a um feijão com arroz um tanto quanto requentado. 

Nosso interesse se volta, então, aos efeitos da doença sobre a personagem em meio a sua rotina obsessiva, bem como à progressão elíptica da investigação conforme a memória de Lucia se degenera. “A Suspeita” é um filme sólido, mas que, em se tratando de memória, está longe de ser inesquecível.

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