Uma nova greve dos roteiristas se avizinha em meio a uma crise (já bem brutal) na indústria do cinema e do streaming, alimentada pela falta de visão estratégica e, olhe só, também devido à escassez de bons roteiros originais no mercado. Dentre os raros roteiristas que conseguem ter seus roteiros produzidos e tornados filmes, estão os cineastas autorais que existem desde os tempos mais primórdios, por exemplo, em Hollywood. Um deles é Ari Aster (“Hereditário” e “Midsommar”), a quem Martin Scorsese recentemente se referiu como “uma das vozes mais ressonantes do novo cinema norte-americano.” 

Com “Beau Tem Medo”, a constatação inicial é que a ressonância do cinema de Ari Aster não é positiva para todos. Neste terceiro longa-metragem, ele, mais uma vez, busca escarafunchar o sofrimento humano em uma narrativa de horror psicológico. Mas aqui o humor ganha espaço, assim como a aventura. O filme de três horas de duração (e é sabido o quanto que o tempo de projeção virou uma questão basilar no cinema contemporâneo imediatista) é uma dolorosa, alucinógena, tempestuosa e provocativa viagem kafkaniana-lynchiana-cronenbergiana mas não, jamais kaufmaniana, pela psique adoecida de um homem de meia idade que atende pelo nome de Beau e é vivido por um certo ator chamado Joaquin Phoenix 

Aster nos joga na existência de Beau ou derrama toda a sorte de angústias, ansiedades, neuroses e delírios do personage (e talvez um pouco das suas?) sobre nós. Beau Tem Medo, muito medo de viver. E ele vive em uma espécie de bairro gentrificado pós apocalíptico, meio craco, enclausurado em seu apartamento simplório. Após um início bem ordinariamente trivial, coisas incomuns começam a ocorrer na rotina de Beau quando ele passa a tomar um novo medicamento receitado pelo seu psiquiatra (Stephen McKinley Anderson, assustadoramente fofo). Daí pra frente, a narrativa de “Beau Tem Medo” toma a forma de uma espiral, um pesadelo edipiano de horror psicológico, mas involuntariamente cômico. Ou tragicômico.  

Lucian Johnston – que montou o incrível “A Tragédia de Macbeth” – constitui os sentidos de “Beau Tem Medo”. E como não poderia ser diferente, o faz de forma frenética e cadenciada com oscilações ritmadas como se a linha narrativa fosse uma mimese do transtorno de personalidade borderline. 

Histeria coletiva 

Como Elvis Costello canta: “me dê a agulha, me dê a corda. Nós vamos derretê-los por pílulas e sabão”, Beau está em busca de paliativos para a dor descomunal que sente. São anos de abuso emocional disfarçado de zelo. De opressão e não amor incondicional. Solitário, ele se agarra em toda e qualquer possibilidade de interação social afetuosa. Esse anseio vem na forma de Amy Ryan (Grace) e Nathan Lane (Roger) ou mesmo da namoradinha de infância Elaine Bray (Parker Posey), todos autômatos prontos para interagir com alguém que não sabe como corresponder. 

Beau passa a correr, tanto quanto Forrest Gump, em busca de rever a mãe (Patti LuPone, grandiloquente) talvez pela derradeira ocasião, em busca de si mesmo escavando nas próprias memórias dolorosas pistas que levem a sua libertação. E a cada agressão sofrida, que vai esfacelando a sua já bastante fragilizada mente, somos também agredidos por sequências de mortes bizarras e até a aparição de um monstruoso masculino peniano-aracnídeo com testículos gigantes no sótão.  

Vislumbrando outras versões de si, da épica-heróica que construiu uma vida, teve três filhos e uma esposa devota (narrada na forma de animação em papel machê); do ancião que fundou uma comunidade teatral na floresta; até a criança que foi para um cruzeiro com a mãe milionária, Beau se despersonaliza para compreender o que é que está buscando afinal. E Aster não dosa a medicação terapêutica quando imbui cada sequência onde Beau parece ter encontrado seu caminho de desafios e perigos cada vez mais horrendos. Até um diálogo com “Annette”, de Leos Carax, surge, ao remontar o plano do homem condenado à deriva em um barco banhado pela luz bruxuleante do luar.  

O que cria um signo interessante e talvez inesperado em um filme dessa natureza psicanalítica, cômico e dramático, é a escolha por cores primárias e tons pastéis para dar o tom e a ambiência – a fotografia desse filme de Ari Aster está mais uma vez a cargo do fiel escudeiro Pawel Pogorzelski. Ela só fica mais densa e pesarosa no confronto de Beau, o filho imaturo e aprisionado, com a mãe mitômana na cena de “castração emocional” numa arena midiática à la Show de Truman 

Participações estranhíssimas (ou rapidíssimas) de Bill Hader e Denis Ménochet também estão contidas em “Beau Tem Medo”, que com seu formalismo estrutural tão gritante chega a criar um baque cognitivo em quem o assiste, de tão hermético na abordagem alegórica da mente adoecida de Beau que é Aster, ainda auxiliado por artifícios como a irrequieta trilha composta por Bobby Krlic. 

Surto criativo? 

Em um breve vídeo de divulgação de “Beau Tem Medo”, Ari Aster de forma jocosa chama esse filme de o seu épico, um “Senhor dos Anéis judaico”. Se o gênero épico aristotélico é em síntese a palavra narrada, necessária muita paciência e alguma boa vontade para decodificar tantas alegorias e códigos já que a mise en scène nem sempre cumpre seu papel de ajudar a visualizar a completude do discurso fílmico ali posto ou proposto.   

Com um cinema sem concessões que vibra em frequência própria trazendo amplitude acentuadamente maior do que certamente os de contemporâneos como Christopher Nolan ou Darren Aronofsky, Ari Aster segue ainda mais dissonante em sua autoralidade. E entrega um dos filmes mais divisivos  e definitivos dessa temporada.