Se a Netflix fosse um canal de televisão brasileira, Millie Bobby Brown seria o que Maisa Silva e Larissa Manoela foram para o SBT durante a infância de ambas. A atriz, que alcançou o estrelato por seu papel em “Stranger Things”, emendou ainda outros universos cinematográficos no streaming — e fora dele como a série de filmes de “Godzilla” —, e, agora, protagoniza “Donzela”, filme dirigido por Juan Carlos Fresnadillo. Para quem gosta de aventuras despretensiosas e contos de fadas, é diversão garantida. 

Acompanhamos Elodie (Brown), princesa de uma terra árida e infrutífera que recebe uma proposta de casamento com o príncipe Henry (Nick Robinson) do reino de Áurea, a fim de salvar seu povo da fome. Na verdade, o casamento é uma fachada para que ela sirva de sacrifício para um dragão, como parte de um ritual centenário. 

OS PONTOS ALTOS

O roteiro demarca com precisão os três blocos principais de “Donzela”. A escolha nos possibilita observar mais atentamente o que funciona ou não na narrativa construída por Dan Mazeau (Velozes e Furiosos 10) e deixa nítido a disparidade no desenvolvimento da trama. Neste processo, vale ressaltar ainda o quão interessante é a criação de universo que o filme se propõe a fazer, emergindo o público em um conto de fadas carregado de mistérios e aventura desde o prólogo. 

A ambientação nos coloca em um cenário bucólico, que reafirma o arquétipo de reinos mágicos das fábulas e mitos principescos com paisagens campestres, frutíferas e florais. Esse quadro possui ainda um dualismo com a montanha que eclipsa o monumental castelo marfim de Áurea a cada pôr-do-sol. As inquietações despertadas por meio desse visual oferecem os indícios das imersões que a narrativa se coloca e prendem o espectador pela expectativa do que virá a seguir. 

Esse primeiro momento é eficaz também em mostrar as características principais dos personagens com o mínimo de importância na trama. A altivez da rainha, a indiferença que disfarça o sofrimento do pai e a inquietude da madrasta são alguns dos pontos bem amarrados pelo roteiro. A escalação de atores mais maduros como Robin Wright, Ray Winstone, Angela Bassett e Shohreh Aghdashloo auxiliam também nesse processo, além de enriquecer a produção. Ainda que eles não tenham tanto destaque quanto Brown e sejam figuras caricatas no sentido de não ter tridimensionalidade, a experiência pesa na interpretação, além de servir como homenagem a clássicos do gênero como “A Princesa Prometida”. É uma pena, no entanto, que Nick Robinson esteja apático e apagado enquanto príncipe encantado, deixando todo o brilho para Brown e Wright nas cenas em que aparece. 

WANNABE DE Daenerys

A trama, contudo, desde seu limiar se concentra em Elodie. É curioso que até mesmo a escolha de seu nome ofereça a ela um tom régio, algo que o roteiro preocupa-se em relembrar insistentemente, ressaltando as características nobres da protagonista. Devo dizer que parte disso se deva a busca por subverter a ideia de uma princesa medieval. Afinal, aquela que deveria ser a donzela em perigo, tornou-se a guerreira. 

Para mim, este é um argumento que funcionaria e encantaria nos anos 1990, mas não hoje quando o disruptivo e transgressor em relação a proposta de personagens femininos de fantasia tornou-se um arquétipo da visão masculina do que seria uma mulher forte, resolvida e livre. Duas coisas podem atestar isso: primeiramente, o fato de a mãe de Elodie ser citada várias vezes por ela enquanto pensa em questões atreladas pelo patriarcado ao feminino como o casamento e o futuro como consorte de um território desconhecido e ser totalmente esquecida quando ela começa sua aventura para sobreviver. Por fim, há ainda a associação imediata que as pessoas fizeram da protagonista à Daenerys  Targaryen, quando a única semelhança é o fato de as duas histórias terem dragões – até parece que essas figuras místicas não existiam antes de George R.R. Martin.

Se fosse só pela primeira parte, “Donzela” seria excelente. Contudo, o filme se sabota, ignorando tudo o que construíra para mergulhar em uma mitologia rasa e pastiche que copia elementos de produções fabulares como “História sem fim”, “Eragon” e a trilogia de “O Hobbit”. O roteiro escolhe por afundar assim como sua protagonista dentro da montanha, tornando-se repetitivo e condescendente para com sua ela. Afinal, como elencar suas características nobres quando esta passa boa parte de sua trajetória sozinha ou fugindo de um dragão que tem lapsos na sua caracterização, ora sentindo cheiro, ora não, por exemplo. Mas “Donzela” tenta e perde a mão, ficando com um desenvolvimento ruim no segundo ato e um final acelerado e com algumas interrogações.

Nesse sentido, o mais próximo que Elodie chega de Daenerys é as duas me deixarem com a sensação que poderiam ter um final melhor.