Quando Thanos transformou em poeira metade Marvel em “Vingadores: Guerra Infinita”, o impacto era amenizado pela segurança de que a situação seria contornada. Afinal, Tom Holland e Chadwick Boseman estavam mais do que confirmados em futuros filmes do Homem-Aranha e Pantera Negra, respectivamente. Diferente do hit da dupla Anthony e Joe Russo, “Gato de Botas 2: O Último Pedido” consegue colocar a dúvida na cabeça do público se o herói felino será capaz de escapar de um destino trágico. Um feito raro e corajoso para uma animação voltada ao público infantil. 

“Gato de Botas 2” traz o velho ditado popular de que um gato possui noves vidas como ponto de partida. Com isso, o herói da franquia “Shrek” está em uma encruzilhada por já ter oito delas, igualando-se a nós pobres mortais. Ameaçado pela morte, o Gato de Botas resolve se aposentar, porém, a possibilidade de recuperar as vidas perdidas o leva a encarar uma jornada cheia de aventuras com um cachorro abandonado e a ex-namorada. 

CORAGEM PÓS-PANDEMIA 

Um intervalo de 11 anos separa o primeiro do segundo “Gato de Botas”. No meio delas, uma pandemia atingiu o planeta e matou milhões de pessoas. Logo, a morte poderia ser vista como o último dos temas a ser abordada por uma animação da Dreamworks. O roteiro de Paul Fisher (“Os Croods 2”), entretanto, aproveita para trabalhar o conceito a partir da ótica de que a perspectiva de finitude pode ser encarada pelo olhar mais atento à vida, valorizando amores e amizades. 

Isso serve para causar uma provocação ao hilário narcisismo do protagonista. Sempre vagando pelo mundo igual um bon-vivant acompanhado de muita festa e desafiando os maiores vilões retratado na excelente sequência inicial ambientada na América Latina, o Gato de Botas, de repente, se vê acuado como nunca antes aconteceu nas aparições dele até hoje.  

Esta quebra ocorre de forma contundente durante um combate em que o felino sai levemente sangrando na cabeça. Um momento de extrema coragem por parte do time dirigido por Joel Crawford e Januel Mercado para uma animação e que coloca a pulga atrás da orelha sobre o destino do herói.  

FÁBRICA DE ÓTIMOS PERSONAGENS 

Honrando a tradição da franquia, a continuação traz novamente uma série de novos personagens impagáveis. O cãozinho Perrito, por exemplo, surge de maneira até previsível, sendo uma espécie de Burro do Gato de Botas seja na inconveniência, tagarelice e animação sem fim acrescentado a uma bondade irritante. De repente, ele conta a própria trágica história de como quase foi morto de forma cruel por aqueles que amava. Se estivéssemos na Disney seria um momento de uma canção chorosa, mas, o universo “Shrek” subverte a expectativa pela inocência com que Perrito relata o caso como se fosse uma boba brincadeira. Dali em diante, impossível não torcer pelo canino, deixando a relação do protagonista com a amada em segundo plano. 

Se a Cachinho e a família de ursos estão mais para adicionar cenas de ação, o vilão Jack Horner rouba a cena. Inicialmente, parece que ele será uma desculpa para “Gato de Botas 2” fazer piada com os contos de fadas, nada que já não tenhamos vistos antes na série, além de ser extremamente caricatural. Até mais da metade do filme, temos um antagonista comum. Porém, a chegada do Grilo Falante como uma espécie de terapeuta alavanca a loucura do personagem, levando a momentos deliciosamente nonsense. 

Com direito a ótimas cenas de ação inspiradas em animes e no oscarizado “Aranhaverso”, “Gato de Botas 2: O Último Pedido” é uma grata surpresa para uma franquia estagnada fazia tempo nos cinemas. Lembra os bons momentos de “Shrek” com provocações e subversões bem-vindas nas animações e ainda aborda temas sensíveis do público adulto de forma inteligente.