Alice Rohrwacher tem um cinema muito pontual. A diretora, oriunda do interior da Toscana, costuma nos transportar para esta Itália que parece carregar consigo: bucólica, rural, encantadora e mágica. Fez isso em “As Maravilhas”, “Feliz como Lázaro” e até mesmo nos episódios que dirigiu de “A Amiga Genial — curiosamente aqueles que Lenu e Lila não estavam em Nápoles — e agora repete a fórmula em “La Chimera”, produção que conta com Josh O’Connor (“The Crown”), Carol Duarte (“A Vida Invisível”) e sua irmã e parceira de trabalho Alba Rohrwacher no elenco. 

A narrativa apresentada pela diretora, que também assina o roteiro, se fundamenta na busca por algo que você almeja muito alcançar, mas não consegue. Ao menos, esta é a explicação dada pela mesma para defender o que seria uma quimera, bem diferente do conceito de um monstro mitológico com cabeça de leão, corpo de cabra e cauda de serpente, o qual a mitologia greco-romana arregimentou. O que nos interessa, contudo, é refletir como a perspectiva levantada por ela perpassa todos os personagens centrais de “La Chimera” arrastando a sensação latente de estarem presos entre um lugar de impossibilidade e contradição. 

O espaço-tempo de Arthur

Parte dessa ideia configura-se pela maneira como o filme explora o espaço/tempo e a relação destes com Arthur (O’Connor). O protagonista é um inglês que vive de assaltos a túmulos. Ele se veste de roupas claras, fede, mora num casebre na beirada do barranco e parece indiferente com muitas coisas que acontecem ao redor. Neste sentido, é interessante como as expressões faciais transpõem o sofrimento interno que carrega e isto enriquece o personagem e a projeção, uma vez que amplia o discurso e as temáticas que a obra suscita. 

Tudo que ele quer é poder estar junto com sua Beniamina, mas isto logo se mostra ser um objetivo inalcançável (quimérico), o que alimenta o fardo e o encantamento que envolve o personagem. Se por um lado, ele sofre pela ausência da amada, por outro há o peso de seu dom sobrenatural: sentir onde há peças valiosas enterradas. Tal proposta evoca o realismo fantástico tão sólido nas obras de Rohrwacher, mas também aproxima Arthur de uma outra classe: a dos heróis aventureiros. Talvez nas mãos de outro roteirista e diretor, ele fosse o arquétipo de um Indiana Jones ou um Ben Gates, mas Alice o humaniza e esta é uma das grandes sacadas de “La Chimera”: a vulnerabilidade e o simbolismo da trajetória do personagem de O’Connor. 

Como já dito, todos os personagens estão em busca de algo que dificilmente encontrarão, isso não só os torna críveis como nos possibilita uma análise existencialista italiana. Arthur está preso num espaço-tempo próprio, uma lacuna no passado que o retroalimenta e o permite estar junto com sua amada. No entanto, seus companheiros de assalto também se encontram presos no passado: o ensejo de encontrar objetos arqueológicos que possam no futuro torná-los ricos. 

Simbologias existenciais

Um olhar mais existencialista, no entanto, nos transmite o quanto isto relaciona-se com a própria situação italiana, uma vez que trata-se de um povo que outrora viveu tempos de glória e agora se afunda em sua própria decadência. Observe, por exemplo, os cenários de “La Chimera”: palácios e casas com pinturas renascentistas, mas que estão descascando e se deteriorando com seus moradores dentro, os quais parecem não se importar, desde que continuem utilizando aquele ambiente. Isso aponta ainda o quanto os personagens quiméricos parasitam o passado, porque o presente é frágil, abandonado e em formação de um vazio que permeia a todos de diferentes maneiras. Estas vulnerabilidades se encontram principalmente em Arthur, um estrangeiro que encontra-se tão decadente quanto o país que o acolheu, além de flertar com a morte e a finitude. 

Neste aspecto, gostaria de ressaltar como a fotografia de Helene Louvart contribui para que o tempo real prevaleça na narrativa. Com o uso de tons pastéis, enquadramentos que denotam a nostalgia bucólica do interior italiano e planos prolongados, o presente desenhado em “La Chimera” nos aprisiona no confronto entre transitoriedade do tempo e o ciclo da existência, todos envoltos de uma beleza efêmera e imaterial. Há uma naturalidade com a qual a câmera de Louvart transmite essas informações, que salientam o bucolismo e o impacto da vida na Itália. 

Um destaque especial que há também na produção é a forma como esta valoriza a cultura italiana, não apenas pelo realce que dá por ser um dos berços da história contemporânea e, portanto, conter traços arqueológicos em cada metro quadrado, mas pela homenagem que a diretora faz a outros cineastas que colocaram o país como um dos expoentes do audiovisual. Em cada cena dançante há um pouco de Fellini e até mesmo Pasolini. E nas mágoas de Arthur, há as lágrimas de uma Gelsomina. Assim como nas esperanças de Itália (Carol Duarte) vê se o otimismo de Cabíria. Há uma atmosfera projetada por Rohrwacher que em muitos momentos emula os sentimentos despertados pelo autor de “A Doce Vida”

“La Chimera” traz tudo aquilo que caracteriza o cinema de Alice Rohrwacher. Mais uma vez a diretoria mostrou sua capacidade de criar uma Itália bucólica, profunda e tocante.