Existe um filme amaldiçoado e se chama O Exorcista”. Não no sentido de que as pessoas que o fizeram morreram – aquelas velhas lendas urbanas – ou de que coisas esquisitas aconteceram durante as filmagens. A maldição é em outro sentido: o clássico do terror de 1973 é um filme perfeitamente autocontido que Hollywood sempre teimou em querer transformar em franquia para sugar até o último centavo possível. E nunca deu certo.

O Exorcista II: O Herege (1977), do bom diretor John Boorman, é sério candidato a pior filme de todos os tempos, sem exagero. Depois, Paul Schrader fez Dominion: Prequela de O Exorcista (2004), sério candidato a filme mais enfadonho de todos os tempos. O estúdio não gostou e refez a parada, com outro diretor, Renny Harlin, e o resultado foi Exorcista: O Início (2005), sério candidato a filme mais ridículo de todos os tempos. Só O Exorcista III (1990) teve um pouco de dignidade: embora nem se compare ao original, seguiu a própria direção e ainda tem um clima esquisito bem atraente, boas atuações e um dos melhores jumpscares do cinema.

O que nos traz a este “O Exorcista: O Devoto”. Trata-se de um produto típico da Hollywood de hoje, dominada pela noção da “IP”, a intelectual property, aquele título do qual todo mundo já ouviu falar, mesmo quem não viu, e capaz de despertar a curiosidade das pessoas e fazê-las abrir as carteiras. É também uma sequência que se aproveita do legado do original: o diretor do filme, David Gordon Green, traz de volta uma das estrelas do longa de 1973, a vencedora do Oscar, Ellen Burstyn, que lá atrás fez o papel da mãe da garota possuída. É o que ele já tinha feito na sua recente trilogia Halloween ao buscar Jamie Lee Curtis para reviver a heroína de 40 anos antes. O IP e o legado são os verdadeiros espectros a assombrar mais esta péssima sequência daquele que talvez seja o maior filme de terror de todos os tempos.

POBRE BURSTYN

Na trama, concebida por Peter Sattler, Scott Teems, o próprio Green e o parceiro da trilogia Halloween, Danny McBride, acompanhamos Victor (vivido por Leslie Odom Jr.), que perdeu a esposa em um terremoto no Haiti há alguns anos, e hoje cria sozinho a filha Angela (Lydia Jewett) nos Estados Unidos. Um dia, Angela e sua amiguinha Katherine (Olivia O’Neill) desaparecem durante um passeio na floresta próxima, e quando reaparecem três dias depois, estão diferentes. Victor logo se vê em um pesadelo quando as meninas começam a demonstrar sinais de possessão demoníaca, e acaba recorrendo a Chris MacNeil, personagem de Burstyn, que encarou o demônio há várias décadas, para ajudá-lo.

“O Exorcista: O Devoto” já começa errado, exibindo a tendência de Green de tornar quase um fetiche a recriação de momentos do original – o diretor abre o filme com cachorros brigando, uma imagem clássica e perturbadora do longa do diretor William Friedkin. E a insinuação de que uma cerimônia vodu tem a ver com o destino da esposa do protagonista é algo clichê e de mau gosto. Mais à frente teremos mais recriações de momentos e uso de elementos do original – a atual produção é praticamente um fan film, produzido e lançado por um grande estúdio.

Porém, essa fetichização do Exorcista clássico acaba tendo um resultado estranho, pois, a presença de Ellen Burstyn não passa da isca de nostalgia mais sem vergonha do cinema dos últimos anos: ela só aparece por uns 15 minutos e depois sai de cena, em uma atuação totalmente no piloto automático. Se ela é a conexão com o original e essa ligação é tão tênue, então a empreitada toda acaba parecendo ainda mais mercadológica e sem mérito artístico. É sério, as cenas com Chris MacNeil poderiam ser cortadas do roteiro e não fariam falta alguma.

Além disso, “O Exorcista: O Devoto” não assusta: Green é incapaz de sustentar um clima de tensão por todo o filme, que começa a parecer com qualquer outro longa de possessão que vemos por aí. A condução do filme é frouxa demais, e isso se estende às atuações: Odom Jr. passa o filme com cara de paisagem, apesar do personagem estar vendo a filha passar por situações bem arrepiantes. Outros atores do elenco têm momentos constrangedores: a entrada em cena de um padre em um momento crucial arranca risos em vez de contribuir para a tensão. Só Ann Dowd, como uma enfermeira veterana que ajuda Victor no exorcismo, sai com dignidade graças à boa atuação. Ela também quase faz funcionar a cena final do longa – quase.

SEQUÊNCIA MAIS PRÓ-RELIGIÃO

E há um subtexto bizarro no filme, que só o ajuda a parecer mais um na multidão: no O Exorcista original, o terror vinha do fato dos personagens serem confrontados por algo sem explicação e, por um longo tempo, tentavam racionalizar o puro horror que estavam presenciando. Em O Devoto, não: em pouco tempo as meninas começam a falar grosso e as pessoas já pegam suas Bíblias e começam a se mobilizar. Parece que os personagens deste aqui assistiram ao filme original ou às cópias feitas ao longo dos anos… Não há o contraste entre religião e ciência, não há desenvolvimento de personagens – pelo menos nada que se compare ao filme de 1973 – e por isso este “O Exorcista: O Devoto” acaba parecendo mais cristão, mais “pró-religião” até, do que o original, de vez em quando acusado injustamente de ser uma propaganda da Igreja Católica.

No fim das contas, “O Exorcista: O Devoto” parece um filme feito por pessoas que obviamente viram e amam O Exorcista clássico, mas não o entenderam, não compreenderam a sua proposta, nem o seu apelo e a sua longevidade. No caso de Halloween, podemos questionar várias das escolhas de David Gordon Green, mas ao menos ficou claro o que o diretor estava tentando realizar ali. Porém, O Exorcista é algo maior, mais complexo, e aqui o trabalho de todos os envolvidos realmente ficou devendo, e muito. Não há terror, o desenvolvimento de personagens é nulo, a trama é clichê e a produção toda transmite um ar incômodo de que vários dos envolvidos estão ali apenas pela grana – não se pode culpar a Ellen Burstyn por nada, realmente, afinal todo mundo precisa guardar um dinheiro para a velhice.

“O Exorcista: O Devoto” prepara o terreno para um próximo filme, e a ideia é fazer uma trilogia. Porém, a verdadeira maldição de O Exorcista se mantém… gosto de pensar que, em algum lugar, o canalha diabólico William Friedkin, que sempre se opôs a fazerem qualquer continuação do seu clássico e desprezou todas as que foram realizadas, está rindo. De novo.