Toda essa história de Barbenheimer talvez tenha servido mais ao filme de Christopher Nolan do que à humanoide sintética da Mattel. Golpe de sorte ou tacada de mestre, a coexistência dos dois títulos colocou a “Oppenheimer” como algo que ele não é: um blockbuster

O que ele é, então? Tomemos algumas hipóteses. A primeira, claro, é a da biopic. Ao longo de três horas, acompanhamos o trajeto científico de J. Robert Oppenheimer (Cillian Murphy), desde seus tempos em Cambridge às suas polêmicas com os burocratas do governo, passando, é claro, pelo nascimento da bomba atômica. 

Mas, se o interesse de Nolan for mesmo o da mera biopic, então o trabalho deixa a desejar. “Oppenheimer” corre pelos seus 180 minutos como quem tem lugar melhor para estar. Fatos, nomes, relações, tudo é atropelado enquanto a trama avança como um rolo-compressor. 

Pobre das mulheres, então. Falo de Florence Pugh e Emily Blunt, nos papéis de amante e esposa do famoso cientista, respectivamente. É até difícil dizer quem recebeu a pior mão no carteado do diretor-roteirista. Pugh, com o temperamento gélido e a afiliação política de sua personagem, pode ser descrita como uma espécie de dominatrix comunista com sérios problemas de nervos. Blunt é igualmente durona e decidida – e igualmente lelé da cuca, que parece ser a única forma que Nolan tem de conceber uma personagem feminina nesse filme. 

O próprio personagem-título fica em um chove-não-molha difícil de engolir. Ambicioso, genial (é o que nos dizem, já que pouco nos é dado em termos de ações concretas que possa comprovar tal genialidade), arrogante, Nolan nos dá pinceladas de todas essas facetas, mas elas nunca deixam de ser meras palavras-chaves no trabalho do diretor. 

Essa pressa toda pode explicar a profusão de gente famosa em pequenos papéis ao longo da projeção – é que rostos conhecidos tendem a passar o recado mais rápido. De todos esses, talvez quem se saia melhor seja Matt Damon. Aqui, ele é o militar linha-dura responsável por nomear Oppenheimer como líder do Projeto Manhattan, sendo a um só tempo escroto e carismático, pragmático e sardônico. Sobretudo, é também um sujeito que teme sucumbir sob o peso do enorme fardo em suas costas, o que o aproxima de Oppenheimer – e as cenas que Murphy e Damon dividem são algumas das melhores do longa. 

O som e a fúria

Então já sabemos que não é uma cinebiografia das melhores. Mas seria o filme uma exploração política e moral das consequências da criação monstruosa de nosso cientista? Em matéria de política, sabemos, Nolan se sai melhor calado. A segunda metade de “Oppenheimer”, praticamente um filme de tribunal sem tribunal à moda “A Rede Social”, é um longo falatório entre homens competindo para medir seus instrumentos não-tão-científicos. 

Sim, a política é cruel e boçal, tal qual encarnada pelo carreirista de Robert Downey Jr., mas isso não redime o Dr. Oppenheimer de ter criado uma arma de destruição em massa, algo que Nolan não parece resolver muito bem. Porque, mesmo que demonstre que o personagem é bem capaz de agir baseado apenas em seu ego desmedido, o diretor ainda parece nos pedir para guardarmos alguma admiração pelo homem. 

O problema é que como, desde os personagens aos experimentos científicos, tudo é apresentado nos termos mais vagos possíveis, o resultado de todas essas contradições é… meio brega, na verdade. 

Significando nada

Mas muita calma nessa hora: resta ainda analisar “Oppenheimer” como um tratado sobre a bomba atômica, uma “experiência sensorial”, como colocado pelo Indiewire de forma tão oportuna. Bom, nesse caso, há de se falar do IMAX, do fato de Nolan ter filmado em película e tudo o mais. Aqui, é preciso dar o braço a torcer: você chega no cinema e vê aqueles rostos gigantescos na tela, a textura rica das suas peles, os azuis (os olhos de Cillian Murphy nunca resplandeceram tanto) e os dourados radiantes: impossível não se pegar desejando que todos os filmes de grande escala ainda fossem rodados em película. 

Mas logo você começa a pensar em outros lançamentos recentes, digamos, um “O Mestre” da vida, rodado em 65mm, que parece ter feito um uso muito mais interessante desse formato expansivo. Paul Thomas Anderson sabe compor imagens que são, por um lado, grandiosas, e por outro, desconfortáveis. Já Nolan se limita a rodar “Oppenheimer” em closes dentro de saletas e laboratórios, ocasionalmente cortando para uma establishing shot (plano de estabelecimento) de alguma paisagem desértica – sempre majestosas, sim, mas você sente que o sujeito está apelando um pouco, deixando o trabalho pesado nas mãos da Mãe Natureza. 

Em outras palavras: não há a menor criatividade pictórica aqui, nenhum aproveitamento das possibilidades únicas que, neste caso, o IMAX oferece. O que é estranho, visto que o diretor já utilizou o formato outras vezes, com melhores resultados. Basta nos lembrarmos de “Dunkirk”, neste sentido: o amontoado de soldados na proa dos barcos e a faixa de areia que se estende ao infinito são ali elementos que a verticalidade do quadro em IMAX aproveita muito bem. 

Há ainda em “Oppenheimer” pequenos inserts abstratos, representações dos nêutrons e prótons e seja-lá-o-quê colidindo, imensas labaredas de fogo e coisa e tal. Tudo acompanhado por um som estrondoso, ruídos atômicos, explosões cósmicas, um volume de sacudir as poltronas. É impressionante, sem dúvida, mas então nos lembramos que o tratado definitivo sobre a bomba atômica foi feito na terceira temporada de “Twin Peaks”, no episódio 8, e a obra de Nolan empalidece em comparação. 

Ou seja: se for esse seu interesse maior – a bomba -, Nolan está uns seis anos atrasado. E de todo modo, a empreitada se torna ainda mais pueril quando posta ao lado da obra lynchiana. Neste sentido, se “Oppenheimer” não revela muita coisa sobre seu personagem-título, pelo menos lança uma luz sobre seu autor: o filme pinta a diferença entre Lynch, um grande artista, e Nolan, um mero tecnocrata.