Fazia tanto calor no Rio que achei que fosse morrer. Juro que o pensamento chegou mesmo a cruzar minha cabeça. Minha camisa encharcada era uma coisa só com minha pele. Não deixa de ter um quê de apropriado: “Sem Coração” é um filme sobre corpos pubescentes em ebulição no calor do litoral alagoano.  

A primeira coisa a se notar no longa de Nara Normande e Tião é que ele parece se encaixar em uma seara muito específica do cinema nacional contemporâneo. Falo aqui daquela leva recente de filmes coming of age que, ora de forma sutil (“Eles Voltam” talvez seja um exemplo), ora explicitamente (digamos, “A Noite Amarela”), dialogam com o fantástico, com o misterioso e o inexplicável.  

Nesse sentido, “Sem Coração” parece estar bem no meio desse espectro. Haverá, por exemplo, barulhos misteriosos para interromper a fruição noturna que Tamara (Maya de Vicq – boa atriz, a menina) faz de seu soft porn. Logo depois, receberemos a notícia do assassinato de PC Farias pela TV (década de 90, quando a pornografia ainda não estava a um clique de distância). 

Em outro momento, uma baleia encalhada (com a qual Tamara havia anteriormente sonhado) será transportada para uma piscina vazia, onde será retalhada. É a mesma piscina onde Sem Coração (Eduarda Samara – outra boa atriz; todo o elenco juvenil está ótimo aqui) organiza uma fila entre os meninos da região nas suas tardes de sexo juvenil. Se pararmos pra pensar, há até mesmo um quê da infame cena da orgia infantil de “It” aqui – o livro, não o filme. Sexo e morte, terror e adolescência. 

Fase mágica da vida 

Aquela que chamam de Sem Coração, aliás, é algo como o monstro da vila: seu apelido deriva de uma cicatriz que carrega no peito. As crianças zombam da menina, que ajuda seu pai vendendo peixes em sua bicicleta. É por ela que Tamara se sentirá cada vez mais atraída. 

Por que o fantástico e o horror se dão tão bem com o universo adolescente? Ora, porque essa é a fase em que tudo é fantástico e tudo é horroroso – explicação besta, mas suficiente para nossos propósitos. Eu, por exemplo, dou graças aos céus pelo fim da minha adolescência. Tenho pavor desse amontoado de corpos suados explodindo em hormônios. 

Mesmo que, assim como eu, você não guarde as melhores memórias do ensino médio, há poesia o suficiente em “Sem Coração” para te convencer de que, por que não?, essa é mesmo uma fase mágica da vida. Uma sequência em específico, envolvendo a pesca noturna de tainhas ao som de Os Tincoãs, já se garante como uma das mais bonitas do cinema nacional recente.  

Há mais a ser descoberto no misterioso e solar filme de Normande e Tião. Mas felizmente, ao contrário desses nossos infantes ofegantes, podemos nos dar ao luxo de mergulhar com um pouco mais de calma nesse mar acalorado.