“Spiderhead” é o novo filme da Netflix e, do ponto de vista de marketing, possui elementos ótimos para a equipe de “Promos” do streaming vender aos seus assinantes: dois nomes em alta graças ao sucesso de “Top Gun: Maverick”, o ator Miles Teller e o diretor Joseph Kosinski; o astro Chris Hemsworth prestes a chegar aos cinemas com o novo Thor de protagonista; e a dupla de roteirista de “Deadpool”, Rhett Reese e Paul Wernick. Para completar o combo, temos uma trama sci-fi futurista que bebe diretamente da série Black Mirror, um dos grandes sucessos disponíveis na plataforma.

Todos esses ingredientes são ótimos para promover as chamadas do filme no streaming e permiti-lo entrar com certa facilidade no Top 10 das produções mais vistas da semana na plataforma. Infelizmente, como se tem tornado muito frequente no catálogo da Netflix, “Spiderhead” tem o selo de qualidade do “filme algoritmo”  que você assiste e, na semana seguinte, já o esqueceu.

Adaptado de um conto publicado no jornal “New Yorker” por George Sanders, a trama envolve uma penitenciária futurista – cujo nome é o título do longa-metragem – controlada por Steven (Hemsworth). Nela, os presidiários têm maior conforto, mas, em troca, aceitam participar de experimentos científicos através de um dispositivo implantado cirurgicamente e que permite aos guardiões do local conhecerem os efeitos de uma nova substância comportamental na mente da população. Steven estreita uma relação muito pessoal e convencional com Jeff (Teller), um presidiário que guarda cicatrizes muito fortes com o mundo exterior.

ZERO RISCO

“Spiderhead” parte de um plot de ficção-científica interessante e que me faz pensar se o artigo em que se baseia seja melhor em apresentar a proposta do que o próprio filme. Afinal, Rhett Reese e Paul Wernick pretendem discutir sobre livre-arbítrio, suas consequências e o uso da farmacologia como uma forma de dominação e controle para compreender os meandros da moral humana (ou seria sua repugnância?), elementos pertinentes para o contexto cada vez mais hedonista em que vivemos, na qual a sociedade busca diversas substâncias para atingir um êxtase artificial de felicidade e assim fugir das frustrações cotidianas.

Neste quesito, o filme tem como ponto em comum o romance Admirável mundo novo, de Aldous Huxley, que mostrava o processo de medicalização administrada em doses diárias para manter as pessoas dóceis, felizes e controláveis pelo Estado. Em “Spiderhead”, tais substâncias equivalem aos antidepressivos modernos que, no contexto geral, não produzem uma sensação positiva de prazer, servindo apenas para retirar o significativo da dor de existir, como uma espécie de acolchoamento permanente para os choques e desencontros da vida. Isso oferece a sensação de falsa recompensa prazerosa atrelada a uma liberdade emocional enganadora.

Uma pena que “Spiderhead” nunca empregue estes conceitos com esmero. O debate ético, moral e tudo o que está acontecendo em torno deles é pouco aprofundado. Falta o peso e o foco que o assunto merecia ser tratado, com o próprio filme aliviando algumas questões que explorariam melhor o núcleo narrativo a que ele se propõe – isso inclui as motivações que regem Steven e Jeff e que se limitam à um par de justificativas que aderem ao escopo de uma “psicologia barata” em torno dos seus respectivos passados. Para um trabalho que se aventura por várias metáforas e discussões, é triste vê-lo se arriscar tão pouco neste segmento.

Um episódio insosso de Black Mirror

Grande parte do próprio cenário prisional que “Spiderhead” apresenta ao público juntamente com suas temáticas sobre livre-arbítrio e as metáforas que giram sobre Jeff e sua jornada de autoaceitação em torno da culpa que ele carrega, poderiam ser facilmente adaptados para qualquer uma das temporadas de “Black Mirror”.

Infelizmente, o texto de Reese e Wernick traça tão mal tudo o que ocorre na prisão que todo o processo de entender o funcionamento dos testes e a natureza ética dos experimentos se perdem por termos personagens mal desenvolvidos juntamente com situações frágeis de suspense que ajudem a encorpar seus dilemas morais. Há uma propensão por parte da dupla em extrair brincadeiras e humor do seu texto ao invés de investir no peso emocional dos dramas e reviravoltas do enredo.

Chama a atenção como o filme a cada revelação sobre o passado dos personagens e o próprio clímax dramático em torno deles, não trazem qualquer impacto. Para um filme que tem como cerne principal discutir as emoções das pessoas, ele se revele tão morno em transmitir os sentimentos de cada um deles para o espectador.

Neste sentido, “Black Mirror” sempre explorou este lado da Sci-fi distópica com um grau de exatidão muito forte no seu discurso social e nos conflitos e dilemas psicológicos dos seus protagonistas. “Spiderhead”, por outro lado, é apenas um “rascunho de botequim” feito em um guardanapo para emular o que existe de melhor da série britânica, seja no contexto dramático, seja no teor de suspense.

DIREÇÃO E ELENCO DESPERDIÇADOS

Se o roteiro não faz muito pelos personagens, logo sobra muito pouco para Chris Hemsworth e Miles Teller trabalharem. Se o Deus Trovão do UCM sofre por ter uma caricatura de antagonista saído de um filme de 007 da Era Roger Moore, ele, pelo menos, injeta uma boa dose de cinismo no CEO megalomaníaco boa praça, uma paródia aos diversos que existem na nossa realidade. Teller, por sua vez, tem um personagem um pouco melhor desenvolvido, o que facilita o ator em criar momentos mais dramáticos em cenas pontuais ao lado do interesse romântico vivido pela ótima, mas desperdiçada Jurnee Smollett.

A direção de Kosinski – que dirigiu o filme enquanto “Maverick” não era lançado no cinema devido à COVID – nem de longe lembra o seu trabalho anterior. Ainda assim, o mundo isolado e sufocante filmado pelo cineasta ganha alguns enquadramentos que se revelam interessantes por colocar seus personagens presos nos quadros sempre através de cenários espaçosos.

Fora estes aspectos, existe muito pouco em explorar questões estéticas ou dramáticas neste campo visual. Se em “Maverick”, ele tinha um maior entusiasmo e domínio de suas cenas, aqui praticamente a situação segue uma via contrária. Se há algo que é bem consistente no filme do início ao filme é a trilha sonora pop, que Kosinski pincela com um grau de qualidade, contribuindo a tornar certos segmentos amorosos entre os personagens em uma dimensão fílmica que transita com habilidade entre o melancólico e descontraído.

No fundo, “Spiderhead” é mais um produto da Netflix com um plot moderninho muito bem alinhado a um cenário e atores que vendem a ideia de “algo de qualidade”, principalmente no seu trailer, mas que no final das contas é tão raso como um pires de leite. Você assiste, consome e já esqueceu o que foi oferecido, apenas esperando pelo algoritmo da próxima semana. E nem precisa recorrer a alguma droga química para apagar o filme da memória.

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