Neste ano de 2023, o cinema perdeu o diretor norte-americano William Friedkin, e vale lembrar, por um momento, ele foi o “rei do mundo”. Friedkin, um cara que um belo dia pegou uma câmera e começou a trabalhar, reinventou nos anos 1970 os gêneros policial e terror, respectivamente, com Operação França (1971) e O Exorcista (1973), ganhando o Oscar de diretor pelo primeiro e criando um fenômeno cultural com o segundo. Depois ele fez o não menos incrível Comboio do Medo (1977), que fracassou nas bilheterias no lançamento, mas hoje é merecidamente reconhecido como outra das obras-primas do cineasta. Esse filme marcou o fim do grande momento de Friedkin e pelos anos 1980 e 1990 o diretor alternou bons e maus momentos, e ainda teve de trabalhar na TV para manter a carreira de pé.

Na telinha, Friedkin aproveitou uma vitrine para contar histórias e adaptar algumas peças de teatro – seu trabalho mais conhecido deste período é provavelmente a atualização do clássico 12 Homens e Uma Sentença (1997), que já tinha ido para o cinema pelas mãos de Sidney Lumet. O diretor faleceu, mas deixou um último filme, outra adaptação de uma peça, este The Caine Mutiny Court-Martial, agora para o streaming – novos tempos – do Showtime. A peça de Herman Wouk, montada na Broadway e vencedora do Pulitzer, já tinha inspirado um filme clássico, o ótimo A Nave da Revolta (1954), estrelado por Humphrey Bogart.

O roteiro do próprio Friedkin atualiza o texto, adaptando-o à Marinha dos Estados Unidos e incluindo referências ao mundo pós-11/09. The Caine Mutiny Court-Martial examina um cenário plausível de um motim dentro de um navio na Marinha: por causa do comportamento errático durante uma tempestade, o capitão Queeg (vivido por Kiefer Sutherland) é afastado do posto pelo segundo-em-comando, tenente Maryk (Jack Lacy). A Marinha, então, conduz um julgamento a respeito do incidente, para determinar culpas e, se condenado, Maryk pode receber uma dura pena. Mas, ao longo do procedimento jurídico, outros fatos sobre a conduta do veterano capitão vêm à tona.

FRIEDKIN PRECISO

The Caine Mutiny Court-Martial é um filme “falado”, ou seja, é a dramatização de um procedimento de corte marcial. Quase tudo acontece na sala do tribunal. O clima de tensão na história é criado através do diálogo e das atuações na tela. Ainda assim, a boa condução de Friedkin evita que se torne – completamente – um teatro filmado. Aqui o diretor adota um estilo seco e simples, muitas vezes com a câmera presa, fixa, o que contrasta com o nervosismo dos personagens em alguns momentos. Os cortes na montagem também são precisos e as cenas fora do tribunal são bem econômicas, às vezes compostas apenas por um plano. É um estilo de narração quase invisível, bem “televisivo”, com a direção se subordinando à história.

Sutherland e Lacy estão bem em seus papeis, mas o destaque do elenco é Jason Clarke como o advogado de defesa Greenwald, o único personagem que percebe o que de fato está acontecendo ali e, para defender seu cliente, acaba aceitando a missão de destruir uma pessoa. É ele também quem conduz a última cena de um filme de William Friedkin, um momento atuado à perfeição e que encerra a história de maneira forte.

Ainda sobre o elenco, The Caine Mutiny Court-Martial não é um lançamento póstumo apenas para o diretor, mas também para o ator Lance Reddick, que interpreta o juiz militar com as costumeiras competência e autoridade. O filme é dedicado a ele nos créditos finais.

PEDIDO DE DESCULPAS?

Ora, os americanos gostam de dramas de tribunal, incluindo alguns sobre os militares, e The Caine Mutiny Court-Martial acaba sendo um bom exemplar do subgênero. O filme ainda se encaixa na filmografia do diretor de outra maneira: nos últimos anos, Friedkin tinha reenergizado a carreira com as adaptações de peças teatrais em Possuídos (2006) e Killer Joe (2011). De certa forma, no fim da carreira, o cineasta fez um círculo completo na sua trajetória, pois, antes de Operação França ele também fez outras adaptações de peças para o cinema.

Porém, mais do que a qualidade de The Caine Mutiny Court-Martial, as atuações ou a temática da história, o mais fascinante no filme está presente nas entrelinhas, no subtexto. No fim das contas, é a história sobre o julgamento de um cara obsessivo, de “personalidade paranoide”, cujo comportamento lhe trouxe prejuízos. Essa é ou não a história do próprio William Friedkin? Ele mesmo admitia – em alguns momentos até com um certo orgulho – que não foi uma boa pessoa. Bem, com o perdão do termo, foi até mesmo escroto e canalha – são notórias as suas histórias de bastidores, de maus tratos a outros atores e brigas com profissionais, especialmente na época em que tinha o rei na barriga. Nas filmagens de O Exorcista, ele foi o verdadeiro diabo no set. Mesmo na velhice, nunca foi um cara de ter papas na língua.

No desfecho de The Caine Mutiny Court-Martial, os personagens parecem aceitar e compreender o ponto de vista do capitão obsessivo. Eles até reconhecem que, por décadas, ele ajudou a proteger o país. Seria o filme então uma tentativa de William Friedkin de pedir desculpas, a seu modo? Ou se justificar? Afinal, o capitão na história é reconhecido como uma figura trágica…. Cabe a cada espectador, aquele que conhecer sobre a vida e a carreira do diretor, decidir isso por si mesmo. Porém, uma coisa é certa: no seu derradeiro trabalho, Friedkin, que tanto examinou o mal em seus filmes e se notabilizou por uma visão niilista do mundo e da vida, filmou uma história que, no fim das contas, pede por um pouco de compreensão. Nada mais apropriado a uma figura que sempre se mostrou fascinante e criou alguns filmes igualmente fascinantes.