Quando encontrei Gregorio Graziosi no saguão do Hotel Thermal, na República Tcheca, o diretor brasileiro estava andando nas nuvens. Seu segundo longa, “Tinnitus”, tinha sido completado depois de uma árdua produção durante a pandemia, estreado mundialmente em grande estilo no Festival Internacional de Cinema de Karlovy Vary e sido bem-recebido no evento.

Às vésperas da passagem do filme no celebrado Festival de Cinema de Gramado, o Cine Set publica a entrevista que fiz com o realizador, na qual ele fala sobre as primeiras reações do público, inspirações do filme e o contexto político em que ele se encaixa.

Cine Set – O filme acabou de ter a sua première mundial aqui no festival. Quais foram as primeiras reações? 
 
Gregorio Graziosi – A première foi incrível. Pra começar, o teatro [Municipal de Karlovy Vary] é lindíssimo. A gente, quando é cineasta, empresta a tela. Diferentemente de uma pintura, que está sempre na moldura, emprestamos a tela por duas horas. Poder passar [o filme] em um teatro daquele foi uma experiência fantástica. Acho que o público reagiu bem – aplaudiram duas vezes o filme. E no final, as pessoas que ficaram mais tocadas vieram se expressar. Tiveram as pessoas que gostaram da narrativa e tiveram as pessoas com tinnitus, que trocaram experiências, contando como se sentiram representadas.

Cine Set – Você chegou a receber esse retorno, durante a produção, das pessoas que sofrem com essa doença? 
 
Gregorio Graziosi Sim, eu fiz uma pesquisa muito grande. Eu tive a supervisão de uma médica chamada Dra. Tanit Ganz Sanchez. Ela chefia um instituto que leva o nome dela e é especialista mundial no tinnitus. Durante todo o processo de escrita, ela foi gentil me apresentando os pacientes e fui conversando com eles para criar essa história.

“A Bigger Splash”, de David Hockney, foi vendida por 23 mi de libras em leilão em Londres em fevereiro de 2020.

Cine Set – Durante a escrita, a doença foi o ponto de partida ou ela veio durante o processo? 
 
Gregorio Graziosi – Não foi o ponto de partida. Eu acho que a primeira semente para criar o filme foi ver o quadro “A Bigger Splash”, do pintor David Hockney. É uma pintura fantástica e enigmática porque você pensa: “Será que [essa pessoa] mergulhou? Será que ela teve um acidente? Onde está esse mergulhador? Se foi um acidente, o que aconteceu com ela?”. Primeiro, eu fiz o curta-metragem chamado “Saltos”, sobre o universo dos saltos ornamentais e um pouco sobre o universo do zumbido. Depois fui conhecendo a médica, estudando o assunto e entendendo como isso poderia afetar a personagem. De alguma forma, deixei crescer esse personagem ausente do quadro do Hockney.

Cine Set – “Tinnitus” referencia imageticamente o Japão de maneira tão forte que é quase impossível fazer uma leitura do filme divorciada desse elemento. Por que você decidiu incluí-lo? 
 
Gregorio Graziosi – Era preciso posicionar o filme, sendo que ele acontecia entre duas competições importantes. O Brasil teve uma experiência muito forte, que foi sediar as Olimpíadas no Rio de Janeiro em 2016. Foi algo que marcou uma geração. Eu pude participar falando com os atletas e as delegações como espectador e percebi que, durante a preparação, eles tentavam imaginar como seria competir no nosso país. Muitas das atletas de salto ornamental com quem eu conversei imaginavam o Brasil que fazia sentido para elas. Somos um país tão plural.  

Você me falou que é de Manaus, eu moro em São Paulo. Temos lugares tão diferentes com culturas tão únicas, então como você pode imaginar o que se come ou que se escuta no Brasil como um todo? Percebi que as atletas faziam isso para entrar em um estado de equilíbrio mental muito importante para elas competirem, então, de alguma maneira elas iam projetando como seria a experiência de estar no país.  

Com base nisso, eu imaginei que essas atletas que estariam se preparando para as Olimpíadas de Tóquio, fazendo uma imersão no Japão a partir do bairro da Liberdade. Isso me ajudou a criar essa atmosfera, essa imersão que acaba sendo uma jornada importante para a protagonista.

“Tinnitus” está na disputa pelo prêmio de Melhor Longa Brasileiro do Festival de Gramado 2022.


Cine Set – O filme bebe bastante da estética do body horror. Quais foram as suas inspirações para essa pegada? 
 
Gregorio Graziosi – É engraçado e difícil responder sobre inspiração. Realmente, eu acho que tem muito body horror. Quem está em São Paulo hoje e é interessado em arte com certeza vai visitar a exposição retrospectiva da artista plástica Adriana Varejão na Pinacoteca [do Estado]. Tem uma série muito interessante dela com umas saunas – um universo asséptico, de azulejos e água – e, de repente, você vê alguma coisa estranha, como uma mancha de sangue, e fala: “Espera, tem alguma coisa errada aqui”. Parece que tem um terror inerente à perfeição estética dos elementos e você nota que alguma coisa estranha pode estar pulsando lá embaixo. Eu posso falar que ela foi uma das minhas maiores referências dentro da questão do body horror desse filme.

Cine Set – Como você compararia o processo de produção desse filme com “Obra”, seu longa anterior? 
 
Gregorio Graziosi – Foram feitos em contextos políticos muito diferentes. “Obra” teve uma facilidade de produção. Eu tinha saído de uma sequência de cinco curtas-metragens e fiz o filme com um prêmio de baixo orçamento. O contexto estava muito favorável. Já o “Tinnitus” enfrentou todo o tipo de problema, desde bloqueio de recebimento de auxílio do governo até as limitações físicas decorrentes da pandemia, que afetou muito a produção e fez a gente paralisá-la em alguns momentos. Acabei usando esse tempo para reescrever o filme e trabalhar com a segunda unidade, podendo alcançar resultado com o qual eu estava satisfeito.

Cine Set – Muitos diretores com problemas similares nesse período aproveitaram para adiantar a edição de seus filmes em andamento. Você conseguiu fazer isso? 
 
Gregorio Graziosi – Sim, mas tudo foi feito à distância. Eu voltei do primeiro round de edição de Recife trabalhando com o Eduardo Serrano para logo em seguida ir com o Fábio Baldo, que mora em São Paulo, no desenho de som. Trabalhei à distância com os dois e também com o compositor David Boulter, que é inglês, e por acaso mora aqui na República Tcheca. Ele é membro da minha banda favorita, Tindersticks. Foi uma coincidência incrível porque quando eu estava escrevendo o roteiro, procurava inspiração na banda dele. Depois tive a oportunidade de fazer o convite para ele trabalhar no filme, então foi um prazer.

“Tinnitus” terá distribuição no Brasil da Imovision.

Cine Set – Você falou da questão de diferentes contextos políticos na produção dos seus dois longas. Você enxerga uma leitura política do “Tinnitus” em algum respeito? E, se sim, qual seria ela? 
 
Gregorio Graziosi – Acho que não. O filme veio em um momento muito particular da política do Brasil que está afetando a vida dos habitantes. Os brasileiros não estão contentes, mas acho que essa história tenha a ver com isso. “Tinnitus” começa com uma desconstrução do hino brasileiro, mas acho que para por aí.

Cine Set – Certo. É uma pergunta que gosto de fazer a diretores brasileiros porque acho que referenciar momentos políticos é uma característica bastante forte do nosso cinema… 
 
Gregorio Graziosi É. Se eu puder responder de novo com uma reflexão um pouco mais precisa, eu acho que nos últimos anos a gente mudou muito como nos relacionamos com as cores do Brasil. Durante o projeto, refletimos sobre como o atleta pode usar essas cores sem ter uma associação política ou tendo uma associação política de alguma maneira na contramão dos seus próprios valores.  

Para mim e acho que para muita gente, ficou um pouco assustador ser exposto a alguns dos símbolos que representam a nossa nação. De repente, você ouve o hino nacional e fala: “Espera, alguma coisa está errada aqui”. Você vê a camisa canarinho e acha que aquilo pode transmitir valores que não sejam do país inteiro, só de metade dele. De alguma maneira, refletimos sobre isso na cena em que desconstruímos o hino, mas eu acho que tudo isso faz parte de um processo de resgate. Espero que possamos rever inclusive o que significa ser brasileiro.

Cine Set – Para fechar, eu queria perguntar sobre o “Casa”, que é um projeto de longa seu anunciado há alguns anos. Tem alguma novidade? Ele ainda está em andamento? 
 
Gregorio Graziosi – Olha, eu tenho outros dois projetos em desenvolvimento que não são o “Casa”. Sobre esse aí, bem, tem algumas ideias que viram filmes, mas tem outras que viram projetos de vida. Eu comecei a morar do lado da casa que eu queria filmar e eu não sei se essa foi uma escolha inconsciente ou não [risos], mas é lá onde eu estou pensando nesses próximos filmes. São longas e projetos que eu gosto bastante. Espero poder falar deles em breve.