“Assassinos da Lua das Flores” é um projeto especial para Martin Scorsese. A exemplo de outros títulos em sua filmografia, este também chegou às telas depois de um longo período de gestação. Mas valeu a espera, e não pelas dez indicações ao Oscar que recebeu recentemente: enfim, Marty coloca juntos em cena seus dois protagonistas mais recorrentes, Robert De Niro e Leonardo DiCaprio. A dupla já havia dividido créditos nos anos 1990 – “O Despertar de Um Homem”, mas o encontro em um filme de Scorsese era inédito. 

Eles são duas vértices de um triângulo (não amoroso, no caso do personagem de Robert) que se fecha em Lily Gladstone, atriz que ganhou destaque principalmente em “Certas Mulheres”, de Kelly Reichardt. Foi justamente ao assistir ao filme de Reichardt que Scorsese encontrou em Lily sua Mollie Burkhart. Ela nunca havia protagonizado um filme de estúdio, e, a princípio, nem o faria em “Assassino da Lua das Flores”, já que o foco era na investigação dos assassinatos ocorridos na Nação Osage, e não no povo indígena.  

Ao entender que a história mais interessante residia naquela comunidade, Scorsese recalculou a rota e também remanejou DiCaprio para o papel de Ernest, o homem branco que se casa com Mollie e trai sua confiança, em uma ação com consequências trágicas para todo um povo. O trabalho de Lily lhe rendeu um Globo de Ouro e também uma indicação ao Oscar de Melhor Atriz – caso vença, ela será a primeira indígena a vencer na categoria. 

No fim do ano passado, o Cine Set pôde participar de uma coletiva de imprensa com Scorsese, Gladstone, De Niro, DiCaprio e Jesse Plemons. Na conversa, o diretor falou sobre a necessidade de mudar o foco do filme, e os atores comentaram o processo de investigação dos personagens junto aos Osage. Confira os melhores momentos da entrevista: 

Você pode falar sobre as suas decisões criativas e sobre como quis contar essa história? 

Martin Scorsese – Bem, nós começamos com o livro excelente de David Grann. Eu e o (roteirista) Eric Roth tiramos dois anos para trabalhar no roteiro. Nesse meio tempo, eu fiz “O Irlandês” com Bob [De Niro], Joe Pesci e Al Pacino. Leo [DiCaprio] ia fazer o personagem Tom White (que ficou com Jesse Plemons), mas sentimos que a história, como o autor aponta, não é sobre quem fez o quê. Isso veio a partir do momento que eu comecei a entender como nós também somos culpados de casos como o extermínio dos povos originários. Tive a oportunidade de conhecer muitos Osage, porque eu fui muitas vezes a Oklahoma, ouvi muitas histórias. As famílias das vítimas ainda estão lá.  

Em um dos encontros, Margie Burkhart (neta de Mollie, interpretada no filme por Lily Gladstone) se levantou e disse que, naturalmente, eles estavam preocupados com a adaptação pelo tipo de filme que eu sou conhecido por fazer, sobre o mundo do crime. No entanto, ela tinha assistido a “Silêncio” e falou sobre o fato de eu ter feito esse filme. Em seguida, afirmou sobre o fato de que ela também é neta de Enerst Bukhart e que ele e Mollie eram apaixonados um pelo outro. Por fim, Margie relatou que muitas dessas traições e assassinatos vieram de pessoas que se gostavam, incluindo o que aconteceu com Bill Hale (De Niro) e Henry Roanm (William Beleau) – segundo ela, os dois eram melhores amigos.  

E, enquanto tudo isso acontecia, nos sentimos presos nessa abordagem do filme pela investigação. Não conseguíamos chegar à natureza daquela tragédia. Em dado momento, Leo perguntou qual era o coração daquela história. E eu respondi que era Mollie, e que Mollie e Ernest se amavam. Foi então que ele disse que deveria interpretar Ernest. Tudo mudou, e, ao invés de irmos do externo ao interno, fizemos o contrário. A partir daí, trabalhamos no roteiro por mais um ano e meio. 

A equipe trabalhou junto à Nação Osage na busca pela autenticidade do filme. Lily, você pode falar sobre a importância e a responsabilidade dessa colaboração? 

Lily Gladstone Eu fico triste que isso nunca tinha sido um precedente. Eu sou uma atriz indígena que interpreta vários papéis de indígenas e, muitas vezes, de povos aos quais eu não pertenço. Em outros filmes que fiz, não nesse, as pessoas ignoram a existência de 574 nações indígenas reconhecidas, logo, não somos todos iguais. Não somos um monolito.  

Eu falo a língua Blackfeet, a que é da área onde cresci. Eu cresci na reserva do meu pai, em uma das nações às quais ele pertence. Mas, pra mim, Osage é uma língua estrangeira. E muita gente acha que atores indígenas simplesmente sabem falar “o idioma” dos nativos americanos. Fui atrás de conhecimento e quis ser o mais respeitosa possível, da forma como eu gostaria de ver uma atriz chegar à Nação Blackfeet para contar a história dos nossos ancestrais.  

Foi maravilhoso ver a produção de “Assassinos da Lua das Flores” passar um bom tempo na Nação Osage, bem antes dos atores chegarem lá, criando um relacionamento com a comunidade. Quando cheguei ao set, já tinha um grupo grande de pessoas que estavam dispostas a conhecer eu e o Leonardo, conversar com a gente sobre os personagens e trabalhar muito comigo sobre como uma mulher Osage daquela época seria.  

Sei que não é mencionado no filme, mas Mollie estudou em um internato. Essa é uma experiência traumática por si só, mas ela provavelmente foi muito bem-sucedida, pois, ao mesmo tempo, sabia como estar naquela comunidade e também como estar em um grupo de homens brancos. O mais importante para mim, porém, é que eu nunca fiquei sozinha no set. Se eu tinha alguma dúvida, tinha não apenas um, mas vários Osage em diversos níveis da produção. Espero que todos os diretores que trabalharem com povos indígenas sejam tão cuidadosos quanto o Scorsese e que ouçam as comunidades, porque isso só fortalece o trabalho que é feito.

Como Scorsese os ajudou a encontrar o tom de cada personagem? 

Leonardo DiCaprio  Acho que tudo começou com a escolha de como contar essa história. No primeiro roteiro que foi feito, Mollie e Ernest eram uma nota de rodapé dentro da investigação dos assassinatos. E por já ter trabalhado com Marty, entendi que a condição humana e a natureza das pessoas estão em primeiro lugar na lista de prioridades dele; depois vem a história.  

Quando lemos aquele roteiro inicial, ficamos chocados e sentimos a tragédia da relação entre um homem branco e uma Osage, e o fato de que ele admite que foi cúmplice e que traiu ela e toda uma comunidade. Mudar essa abordagem abriu o nosso mundo e nos fez investigar a verdade daquela história, obviamente escutando os Osages e entendendo a heroína que Mollie foi naquele momento.  

Compreendemos que ela foi uma catalisadora ao trazer atenção aos crimes. Eles estavam sob a jurisdição do FBI, mas ela foi a fundo para que fosse feita justiça. Senti uma enorme gratidão de poder contar essa parte da história dos Estados Unidos e que essa foi uma jornada em busca da verdade daqueles personagens. Cada um de nós pode ter a sua interpretação sobre Mollie, Ernest, Hale ou qualquer um que está no roteiro, mas fizemos tudo o que pudemos para contar a verdade sobre os Osage. 

Robert De Niro – Bem, Marty e eu estamos no nosso décimo filme juntos. É sempre um grande prazer trabalhar com ele. O ritmo é sempre ótimo. 

Jesse Plemons – Como a Lily disse, quando chegamos ao set, deu pra perceber que muito do trabalho já tinha iniciado. Antes de eu chegar lá, recebi um “kit” de pesquisa com tudo o que eu poderia aprender sobre Tom White, além do livro de David Grann. A minha experiência de trabalhar com Marty e essa equipe é que há uma constante busca pela essência do que está acontecendo na cena. Sinto que a maioria das nossas conversas sobre Tom passaram pelos temas de religião e espiritualidade, sobre esse tipo de homem que segue uma certa doutrina. Não discutimos com julgamento ou pregação, e sim focados na forma como eles viviam a vida. 

Leo e Lily, os personagens de vocês têm um relacionamento complicado e que muda drasticamente ao longo do filme. O que vocês descobriram sobre a relação entre Mollie e Ernest no processo de pesquisa? 

Lily Gladstone – Em uma das primeiras vezes que fomos à comunidade juntos, pudemos conversar com Margie Burkhart, a neta de Mollie e Ernest. O pai dela era o Cowboy, o garotinho que está no filme. Ela nunca conheceu a avó, que já havia morrido quando ela nasceu. Leo pôde conhecer algumas pessoas da família Burkhart, da parte não Osage. 

Uma sobrinha de Ernest contou sobre uma vez que ele ficou bêbado com uma gemada “batizada” no Natal, algo assim [risos]. Ela contou que, sempre que alguém mencionava Mollie, ele ficava com raiva e falava de como a amava. Conversamos sobre isso, sobre como, antes, poderia ser apenas um homem convivendo com a culpa e tentando se convencer que a amava ou que poderia ser verdade. Para mim, a maior prova de que era verdade é que muitos homens brancos que se casaram com mulheres Osage eram abusivos, controladores, queriam que elas fossem obedientes. Aquilo que Hale encoraja Ernest a fazer.  

Ernest Burkhart aprendeu a falar a língua Osage para que pudesse falar no mesmo nível que Mollie. Isso não era comum aos homens brancos que se casavam com mulheres Osage. Ele amava os filhos. Mesmo depois dos julgamentos, quando se soube de tudo o que aconteceu, Cowboy ia [encontrar] com o pai, a quem ele chamava de Assassino ou Dinamite ou algo assim. Por mais contraditório que isso possa parecer, era um filho que ainda era fiel ao pai e era um pai que ainda amava o filho.  

Sinto que as evidências de uma história de amor muito difícil de traduzir e articular estão no legado que Ernest e Mollie deixaram. No começo do processo, quando eu e Leonardo estávamos encontrando a dinâmica entre os personagens, houve um grupo de cenas que podiam ser interpretadas de várias formas. 

Leo, gostaria de acrescentar alguma coisa? 

Leonardo DiCaprio  Realço o quão maluca foi a existência dessa história de amor. Quando comecei a ler sobre Mollie e Ernest, fiquei chocado. E, bem no início, Marty e eu fizemos uma pesquisa em filmes antigos e conversamos sobre como fazer uma história de amor funcionar nessas circunstâncias. Estudamos muito o trabalho de Montgomery Clift em “Um Lugar ao Sol”, um filme sobre ganância e a corrupção no Sonho Americano. Esse tipo de história de amor já foi feito antes no cinema, né?  

Com a mudança de foco do filme para Ernest e Mollie e as conversas que tivemos com os Osage, entendemos que, por mais bizarro que fosse, eles tinham uma conexão. Mesmo após o julgamento, os dois continuaram se vendo.  

Mais do que qualquer outra coisa, nosso trabalho era contar essa história da forma mais crível possível. Por mais improvável que pareça, com as atrocidades que Ernest faz e com Mollie descobrindo o que está acontecendo, é um filme baseado em evidências de uma história que os Osage não falavam abertamente. Estamos aqui, 100 anos depois, trazendo esses fantasmas e essas histórias do passado, filmando nas locações reais e trabalhando junto aos descendentes das vítimas. Foi uma honra fazer parte desse filme e contar essa história. 

Cine Set – Jesse, seus trabalhos mais recentes incluem “Ataque dos Cães” e este filme. Ambos são faroestes revisionistas, com uma quebra na forma como se trata gênero, política e, no caso de “Assassinos da Lua das Flores”, os povos originários. Isso é algo que você considera quando escolhe fazer ou não um filme? 

Jesse Plemons  Eu queria dizer que sim, mas, no caso de “Ataque dos Cães”, era um roteiro incrível. Quando eu o li, senti que era algo que eu nunca tinha lido antes, uma abordagem inédita do faroeste e isso me empolgou muito. Com “Assassinos da Lua das Flores”, minha introdução à história foi o livro de David Grann e eu não sei se pensei nele como um faroeste, necessariamente. Deixei levar pela história mesmo.  

Mas eu cresci amando Larry McMurtry (autor de obras como ‘A Última Sessão de Cinema’ e o roteiro de ‘O Segredo de Brokeback Mountain’). Ele fez um trabalho interessante ao dissecar a mitologia do faroeste e do próprio cowboy. Sou do Texas, então eu cresci nesse ambiente, e é algo que eu conheço. 

A última pergunta é para Scorsese. Sobre a sua aparição no final do filme, enfatizando as atrocidades cometidas contra os Osage. Como surgiu a ideia de ter você lendo o obituário de Mollie? 

Martin Scorsese – O programa de rádio era um programa de verdade. Quer dizer, era a versão de Eric Roth. Foi filmado em Nova York, de onde esses programas eram transmitidos. Fiquei impactado com a ideia de que todo o trauma de gerações, com genocídio, traições, tudo é reduzido a meia hora de entretenimento. E, de alguma forma, eu tinha que conseguir uma forma de fazer a transição de algo tão chocante quanto aquele programa e voltar para o que é o coração do filme.  

Sinceramente, eu não sabia como dirigir essa cena. Em Nova York, com minha esposa, minha filha e minha neta, caiu a ficha de que, de uma maneira meio esquisita, eu estou fazendo um filme, que muitos podem chamar de entretenimento. De certa forma, fazemos entretenimento sobre as vidas das pessoas e temos que lembrar disso e tentar equilibrar.  

Senti uma culpa e pensei que eu poderia fazer o papel do locutor. Você pode dizer que eu gosto dos faroestes clássicos e que, neles, os povos indígenas são mostrados de uma forma ruim. Eu faço parte do sistema. Eu sou descendente de europeus. Eu tenho culpa. 

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