Um nome importante do meio artístico utilizando seu prestígio para promover um ambiente tóxico de trabalho ao promover abusos morais e até sexuais a seus subordinados. Não, ainda não se trata da cinebiografia de Harvey Weinstein e sim do mote principal de “Anna”, novo filme dirigido por Heitor Dhalia. 

Conhecido por filmes como “O Cheiro do Ralo” e “Serra Pelada”, Dhalia precisou lidar com as necessárias mudanças sociais trazidas pela onda feminista intensificada na última década, especialmente, no mundo das artes com as revelações surgidas na esteira do #MeToo nos EUA, Europa e Brasil para realizar o filme.  

Nesta entrevista exclusiva concedida ao Cine Set, o diretor fala sobre como foi readaptar diversas vezes o roteiro de “Anna” à medida em que novos elementos e debates eram trazidos à tona, além de desabafar sobre lançar o filme em plena pandemia. 

Cine Set – “Anna” aborda mostra este processo artístico conturbado que ultrapassa limites éticos em muitos pontos a partir do machismo e do poder de um diretor sobre seu elenco. Quais cuidados e pontos norteadores você e a Nara Chaib Mendes buscaram na construção do roteiro na abordagem destes assuntos? 

Heitor Dhalia – O projeto começou a ser idealizado muitos anos antes de estourar os casos do #MeToo; para se ter uma ideia, foi antes mesmo da Primavera Feminista. A história tinha um outro contexto ao partir da figura mítica de um diretor de teatro com seu processo de criação, a relação com o elenco e as dinâmicas do fazer teatral. 

Ficamos muito tempo fazendo o roteiro, houve dificuldade de captação por ser um filme de arte e, quando conseguimos levantar o dinheiro, o mundo mudou com a Primavera Feminista e ressignificou todo o debate público sobre o tema. Foi preciso readaptar o roteiro trazendo estas discussões contemporâneas. Porém, no momento da pré-produção, estourou o #MeToo e, mais uma vez, ressignificou tudo. 

Foi um debate muito tenso de construção desta narrativa por conta do conflito histórico. “Anna” tentou incorporar isso ainda que mantendo uma integridade artística sem medo nem cair no panfletário. A ideia era ter uma discussão ampla, esférica e contraditória como o ser humano é. Além da Nara, o elenco debateu muito para ajudar nesta construção começando na sala de ensaio e, em seguida, levando para o set. Foi um processo rico de criação até pelo conjunto de atores muito engajados, politizados, questionadores. 

Durante a montagem, a discussão continuou, afinal, é uma obra perene abordando um debate público fervoroso, apaixonado, mas, que também tem excessos e contradições, mudando a toda hora. Diante disso, preferimos adotar um período de montagem mais longo para amadurecer a discussão do filme e não ficar preso aos sabores do momento. Minha preocupação era fazer uma produção além do tempo.  

Finalizamos “Anna” e, quando estava prestes a ser lançado, surgiu a pandemia com o contexto novamente alterado. Estamos lançando agora para cumprir prazos da Ancine (Agência Nacional de Cinema) neste momento em que as salas de cinemas não estão cheias, mas, acredito que o filme encontrará o espaço dele. “Anna” foi um filme desafiado pelo seu tempo. 

Cine Set – Durante boa parte da história, aqueles abusos do Arthur são vistos pelos outros atores nos ensaios e praticamente eles não reagem. A história também corria solta no meio cultural como mostra o filme. E é inevitável pensar nos casos trazidos à tona pelo #MeToo nos EUA e no Brasil. De que forma você acredita que uma cadeia de abusos como essa pode ser interrompida? Você sente que há uma conivência do meio em abafar ou não se posicionar em casos do tipo?  

Heitor Dhalia – Cinema e teatro possuem dinâmicas diferentes: o primeiro acontece em um período de tempo muito curto, enquanto o segundo é de longo prazo com suas companhias. E há estas figuras de poder no teatro que, aliás, se faz presente no filme na fala de ser e continuar rei, algo trazido em “Hamlet” e que o Arthur faz uma reflexão de grandes personagens shakesperianos como Rei Lear, Macbeth de estar no comando e de estar desafiado o tempo inteiro. Não é fácil estar no poder, se perpetuar nele, os motivos de tê-lo nem como você o usa.  

As relações de criação possuem dois lados: um está nesta questão do poder e nas redes de proteção dela, enquanto o outro há o fator do processo criativo ser violento mesmo. Nenhuma área do mundo onde você alcança excelência de criação ou performance sem passar por processos estressantes. Faz parte da etapa de superação; há um processo de dor mesmo. Escrever um livro, fazer um filme é doloroso.  

Logo, qual é o limite que é permitido para um diretor, um artista, um técnico de futebol de levar o seu elenco à exaustão para conseguir um resultado? O que é lícito e não lícito? O que pode e o que não pode? O filme busca abordar isso também. Há uma grande complexidade nisso, afinal, existe a lei para determinadas atitudes e comportamento, mas, há outras que estão nas áreas tácitas das relações humanas difíceis de serem arbitradas.  

Foi um processo muito rico de discussão e ressignificação de limites que irá continuar. Até porque houve muitas coisas apontadas de forma muito corretas, mas, também aconteceu, nos EUA, a revisão destes movimentos por conta de excessos ocorridos no debate público. Esse será um assunto que acontecerá ao longo dos próximos anos, se reinventando com várias correntes e frentes de pensamento travando estes debates na esfera pública para que nos refundemos e achemos novos parâmetros. “Anna” lança uma discussão sobre esses pontos fora da esfera óbvia.  

Cine Set – Compreendo, mas, em relação à conivência? O que você acha sobre isso? 

Heitor Dhalia – Não sinto tanto isso. Vejo as pessoas muito combativas, fazendo vários protocolos, cuidados nos contratos, atenção dos players sobre o assunto. Tem muita gente atenta a este debate; não vejo mais isso. 

Acredito que haja questões complicadas de se arbitrar mesmo. No teatro, por exemplo, há diretores muito famosos de outra geração com perspectivas diferentes. Certos profissionais possuem o Método de trabalho e eles mesmos são os juízes deste método enquanto trabalham com atores muito novos, às vezes, em processo de formação. Nisso, entra um jogo de manipulação, sadismo, dor. A contradição é que, às vezes, isso resulta em obras e na formação de atores maravilhosos. Mas, é permitido isso? Até que ponto é permitido isso? Isso é bom? É ruim? 

Estamos acostumados a olhar este debate apenas sob um ângulo e não é assim; trata-se de questões mais complexas. Por isso, precisamos de honestidade intelectual para debater de uma maneira correta, justa e aceitando o que é humano também. Somos seres humanos com suas falhas. O ser humano é falho. A falha trágica existe para todos. Logo, todos os lados possuem suas falhas. Existem as questões, os dilemas, as contradições e os desejos, independente se está ou não com o poder. 

Cine Set – Fale um pouco do elenco, por favor, especialmente, as escolhas do Boy Olmi e da Bela Leindcker. 

Heitor Dhalia – Tenho uma produtora de elenco maravilhosa chamada Ana Luiza. Ela realiza um trabalho de pesquisa muito grande, procura em mil lugares. Todos os pré-testes são feitos por ela. Chegamos ao Boy Olmi, por exemplo, através de um diretor amigo nosso, Charlie Brown, que fez a indicação – aliás, ele era um ator que só havia feito comédias no cinema argentino. 

Depois, durante uma semana, fizemos uma oficina para entender quem seria a protagonista. Queríamos alguém igual no filme, ou seja, uma atriz em início de carreira. Por fim, realizamos um processo quase ritualístico, de técnicas de teatro para ouvir esse elenco. Foi um processo muito rico e interessante. 

Em “Hamlet”, o protagonista explica aos atores como eles devem atuar na “Ratoeira”, a peça que ele faz para o Rei Cláudio entender que ele sabe quem matou o pai. Ele diz que ‘você não pode se exceder’, ‘tem que ser na medida da palavra’. Daí, comecei a pensar nisso também de que tudo deveria acontecer na medida da verdade, do texto, da cena. Logo, a ideia era fazer o teatro e a câmera se achar ali. 

Cine Set – Como funcionou para você, um diretor de cinema que deve passar por muitas das pressões artísticas do Arthur, retratar um diretor tão limítrofe de métodos questionáveis? O processo de realização do filme, de algum modo, te fez rever essa relação com os atores? 

Heitor Dhalia – Tive uma sorte muito grande de sempre ter trabalhado com um preparador de elenco muito bom, o Chico Accioly, hoje, trabalhando na Globo. Gosto muito de atores e me dou bem demais com quem eu trabalho. Não acredito no processo da exaustão e sim na parceria da construção para chegar a um determinado lugar. 

Considero o trabalho do ator algo muito sensível para você fazer uma pressão indevida. Evidente que cada intérprete precisa de algo específico; há aqueles que necessitam de proximidade, outros de distanciamento e também tem os que se precisa pressionar um pouco mais.  

O cinema é uma guerra, igual “Apocalypse Now”, e o set de filmagem um campo de batalha. O conflito que acontece na tela também ocorre nas gravações. Isso ocorre na direção e nos demais níveis. Certa vez, o Caio Gullane (produtor) falou que um filme é igual a um touro bravo querendo derrubar o diretor a todo momento. O cineasta precisa ter força para isso não ocorrer.  

Logo, você precisa usar estes comandos de força, os quais podem sim serem contestados. Há quem consiga fazer de forma mais suave, delicada e outros não. Mas, sejam filmes feitos por homens, mulheres, trans, o set sempre possui este ar conflituoso. Tudo depende da forma como você maneja esses conflitos. 

Mas, sim, quando se aborda um personagem desses, você reflete sobre isso. ‘Será se eu tenho excesso aqui?’ ou ‘eu poderia ser mais assim?’ são questionamentos que surgem mesmo. O grande exercício para mim em “Anna” foi justamente o processo da escuta tanto da minha parceira no roteiro quanto do meu elenco. Foi um processo muito bacana e rico de criação. 

Cine Set – Pelo menos, diferente do Coppola, você não infartou… 

Heitor Dhalia – Não, não. “Anna”, na verdade, foi muito fácil, prazeroso de ser realizado. É uma produção mais concentrada, ambientada em grande parte no teatro. Todas as locações eram do modernismo setentista brasileiro de arquitetos como Paulo Mendes da Rocha, Lina Bo Bardi. Gravamos no Sesc Pompeia, no Teatro do Masp. É uma produção mais fechada, poucas semanas de filmagens. 

Cine Set – “Anna” é um filme sobre o processo criativo de uma peça e o teatro acabou encontrando justamente encontrando um caminho durante essa pandemia no audiovisual. Muitas peças foram encenadas em plataformas para a internet. Como você observou essa ponte entre os dois setores? 

Heitor Dhalia – Cheguei a acompanhar algumas coisas, vi tentativas interessantes de unir os dois universos. A graça do teatro é o ao vivo de ter o ator em cena com aquela força clássica do palco como um lugar sagrado, onde você cria mundos imaginários na cabeça do espectador. E o cinema tem uma dinâmica própria que se modifica pelas tecnologias. Aprendizados vão surgir nestas duas áreas ainda que as linguagens sejam diferentes. 

Também acredito que o ator contemporâneo pode ser muito mais do que só aquele que incorpora personagens; ele também pode ser um criador. Sempre sugiro para os intérpretes amigos meus que criem, escrevam, produzam, dirijam, atuem. Só ficar esperando o papel no cinema pode ser frustrante. 

Cine Set – O filme foi exibido no Festival do Rio, Mostra de São Paulo, você já concedia entrevistas sobre “Anna” e, de repente, veio a pandemia. E, agora, o longa volta para o lançamento dele nos cinemas 1,5 ano depois. Como é esse processo para alguém que dedicou tanto tempo para um projeto? Temeu em alguma possível defesagem temática ou de abordagem com o tempo ou não? 

Heitor Dhalia – Claro que é doloroso lançar um filme para ninguém ver. Para você ter uma ideia, na pré-estreia, nem eu vou (risos). Ao mesmo tempo, é o contexto histórico do mundo atual. Estamos em uma pandemia. Há uma exigência legal de lançar o filme agora, então, não teve jeito. Temos que aceitar. 

Cada filme tem a sua história e “Anna” irá achar o seu caminho. Ele será visto na televisão ou no streaming ou no link vai circular pelo mundo. Falo isso por outros filmes meus; “O Cheiro do Ralo”, por exemplo, é visto até hoje. Você vai gravar no sertão de Pernambuco ou em uma favela do Rio de Janeiro, tem alguém que viu o filme. Uma produção tem uma vida maior do que apenas na sala de cinema. 

Decidi não sofrer com isso, tenho muitos outros projetos nos próximos anos. Gosto demais do resultado final, pessoalmente, foi um trabalho que curti fazer.  

Nestas horas, lembro do Fernando Pessoa que só foi começar a ser lido depois que morreu e também do “Playtime – Tempo de Diversão”, do Jacques Tati: quando estreou em 1967, não se deu muita atenção a ele, porém, 20 anos depois, foi exibido no Festival de Cannes e ovacionado por 20 minutos. Como é um filme cult, clássico e possui um caráter atemporal, acredito que “Anna” vai achar seu público. 

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