O ponto de partida de “Tempos de Barbárie – Ato I: Terapia da Vingança” é uma triste realidade tão comum a milhões de brasileiros vítimas da violência urbana: durante uma tentativa de assalto, a filha da advogada Carla (Cláudia Abreu) é baleada e fica em estado grave.

A partir disso, qual a saída? Aguardar os caminhos legais acreditando nas instituições tradicionalmente lentas ou partir para fazer justiça com as próprias mãos? Roteirista de “Central do Brasil” e “Faroeste Caboclo” e diretor de “O Outro Lado da Rua”, Marcos Bernstein aproveita o mote para fazer uma adaptação dos filmes de vingança famosos nos EUA e no cinema asiático para a realidade brasileira.

O Cine Set conversa com Berstein e a atriz Júlia Lemmertz sobre o filme marcado para estrear nesta quinta-feira, 17 de agosto, em todo país.

Confira a entrevista completa:

Cine Set – Falamos sempre em tempos bárbaros, mas, historicamente, o Brasil nunca soube não estar neste lugar. A realidade e ficção se confundem nesse reflexo do passado. É nesse sentido que o filme surge? 

Marcos Bernstein – Muito interessante isso que você fala. Filmes que não são diretamente comerciais tem um tempo de gestação e captação demorados, logo, este projeto não é de ontem. A ideia original veio de tempos atrás por conta de violências urbanas que enfrentei e fiquei refletindo sobre o assunto.  

Quando comecei a trabalhar no projeto, como você disse, a barbárie já estava lá em um país historicamente violento, desde o Brasil colônia, escravidão, golpes de Estado, guerras civis e, hoje, com estas quadrilhas que cercam cidades do interior. A barbárie se renova e encontra caminhos que nos surpreendem como ocorreu ultimamente com a popularização do conceito de que se arma era algo positivo. Neste cenário acontece a gestação do filme.  

“Tempos de Barbárie” não apresenta uma tese oficial nem respostas, mas, a ideia dele é mostrar que, a partir da autodestruição de uma pessoa que passa por uma violência extrema entrando neste furacão, temos o reflexo de um país e da cadeia que gera esse tipo de reação individual. Isso tudo dialogando com o subgênero dos filmes de vingança tão populares no cinema americano e no asiático em que se mata todo mundo sem o menor problema, quase como um videogame. Aqui, busquei trazê-lo para o Brasil com as cenas de ação e suspense, mas, também refletindo a nossa cadeia de barbárie permanente. 

Cine Set – Júlia, você e a Cláudia tem um trabalho muito forte corporal. Desde o início, sua expressão corporal, mesmo serena, apresenta muita angústia. O que você sentiu quando leu o roteiro e gravou as cenas? Como foi o peso do texto no seu corpo, na sua mente? 

Marcos Bernstein – Antes de responder, quero dizer que você é fenomenal, Júlia. Fiquei meses editando o filme e seria normal enjoar da cara de alguém, mas, vê-la e a Cláudia também era sempre um prazer. Fizeram uma grande dupla. 

Júlia Lemmertz – Muito obrigado pelas palavras, Marcos! Sobre a pergunta, eu li o roteiro e tive diferentes sensações. As duas personagens femininas são complementares. O encontro delas não é por acaso. A Natália é até pacificadora, trabalhando em um grupo de terapia para ajudar pessoas traumatizadas. O intuito dela é fazer os pacientes entenderem o que aconteceu e mostrar que não estão sozinhos. Ainda assim, ela também traz as próprias dores e angústias. Quando a Carla chega, há uma nova carga de uma dor, pois, está em carne viva. Ela diz tudo o que sente. O roteiro é muito interessante por nos colocar em posições extremas de forma surpreendente.  

Sobre o trabalho corporal, houve realmente um pensamento e preparação para chegar a isso que vemos em tela. Eu sempre quis fazer “Kill Bill” (risos). Isso foi só o começo. Não é comum termos mulheres protagonizando obras como essas, sendo sempre destinado aos homens pegar em armas e partir para a vingança. Eu e Cláudia conversávamos sobre isso, mas, também falando sobre a realidade muito dura que cercava aquela história, especialmente, do nosso país e das condições que levam a esta violência.  

Cine Set – “Tempos de Barbárie” tem uma ambientação muito escura, soturna, quase uma representação do peso tema. Gostaria que você falasse mais sobre esta escolha e do impacto dela sobre o clima do filme. 

Marcos Bernstein – Realmente não queríamos fazer um filme solar – ainda que fosse possível de realizar como vemos, por exemplo, ao tratar a violência no sertão nordestino. Aqui, a proposta era mostrar esta violência urbana sufocante e densa trazendo ainda uma pegada meio pop com influência asiática nas cores. O filme acompanha muito o subjetivo da Carla ficando ainda mais intenso e denso neste sentido. 

Cine Set – É muito simbólico que a criança atingida pelo tiro seja negra, mesmo sendo de classe média. Segundo dados do Instituto Fogo Cruzado, 103 crianças foram atingidas por armas de fogo, destas 30 morreram, nos últimos quatro anos (2017-2021). Só esse ano já foram 10 mortes. Sempre vítimas negras e periféricas. Foi intencional colocar essa menina negra no centro da discussão? 

Marcos Bernstein – Há sim um lado simbólico, sem dúvida, mas, era uma intenção de trabalhar a discussão da dinâmica da violência. Não busquei entrar em um debate histórico até por não ser a pretensão do filme, mas, quis representar de um certo tipo de casal de classe média e sujeito a este tipo de reação. Sei que não é a maioria da nossa sociedade – a maioria da elite é branca -, mas, ela existe e a violência pode atingir todo o tipo de composição familiar. 

Cine Set – Também não dá para desvincular “Tempos de Barbárie” com o discurso retaliativo. Fiquei pensando que nesta crise moral e ética que Carla (Cláudia Abreu) e a própria personagem da Júlia Lemmertz entre fazer a coisa certa ou se vingar. Como vocês observam estes dilemas enfrentados pelas protagonistas do filme? 

Marcos Bernstein – Acredito que o filme reflita esta sociedade amoral e imoral na questão da violência, a qual está incrustrada na sociedade, tanto nas vítimas quanto em quem realiza. Se você fizer uma enquete, é provável que a maioria da população seja a favor do porte de armas e outras pautas retrógradas. 

Isso reflete esta possibilidade de tentar fazer justiça com as próprias mãos, um sentimento que, se de um lado, tem certa legitimidade, do outro, a contenção dele para não virar uma atitude mais drástica faz parte do processo civilizatório, afinal, há leis para que ocorram as punições. Logo, na hora em que você não consegue controlar o impulso, acaba-se por refletir uma crise ética gigantesca com gente amarrada em poste e linchamentos, os quais convivemos diariamente de maneira indecente. 

Júlia Lemmertz – Além disso, sinto que o filme também questiona o Estado formado no Brasil ao longo dos tempos. A responsabilidade está na mão de todo mundo, afinal, elegemos quem faz as leis e comanda o rumo das coisas. Tudo vai se avolumando de um jeito levando às injustiças sociais. Logo, a situação da Carla e da Natália nos coloca a pensar até onde somos capazes de aguentar. Por mais que se saiba que certas atitudes não são certas nem que matar o próximo é a solução, a corda está tão esticada que, infelizmente, pode levar a estes caminhos.  

São discussões preciosas, pertinentes e necessárias, porém, estamos longe de chegar a um acordo, pois, herdamos muitos e muitos problemas. Fico atônita pensando se isso tem jeito. Daí, lembro do Darcy Ribeiro e de pensadores capazes de mostrar para nós que o caminho era a educação e sua missão de empoderar os jovens, fazendo-os entender que eles têm lugares na sociedade sim.  

Marcos Bernstein – A barbárie do filme está em todos os atos, inclusive, cheguei a ficar dividido em dar o título entre “Atos de Barbárie” e “Tempos de Barbárie”. Afinal, os tempos são de barbárie através de vários atos de barbárie. No filme, há uma sucessão deles cometidos o tempo inteiro contra e pela Carla. E este cenário se reflete na falta de educação, de esperança, do direito de não ser violentado e também do Estado não oferecer o mínimo. Isso acaba sendo refletido nas pessoas destroçadas marcadas por abandonos e ausências familiares e sociais, gerando um sentimento de revolta e exacerbação emocional.  

Júlia Lemmertz – Alguém me pergunta certa vez qual era a mensagem do filme. Na minha visão, acho que “Tempos de Barbárie” coloca, na verdade, muitas questões. A produção faz algo bonito de nos convidar a pensar, gerando uma provocação e estimulando a olhar para o quadro inteiro.  

Marcos Bernstein – E fazemos tudo isso dentro do gênero de ação com cenas de perseguição e todos os principais elementos deste tipo de filme. Quem gosta de thrillers sairá com uma experiência de cinema muito legal e com algo a mais. 

Cine Set – “Tempos de Barbárie – Ato I: Terapia de Vingança”, título forte, chamativo. Teremos uma continuação com Carla e Natália? 

Marcos Bernstein – A ideia é fazer uma trilogia sobre a barbárie em filmes independentes. São produções correlatas abordando diferentes aspectos. A primeira parte trata sobre a violência, a segunda mostra a barbárie relacionada ao amor. 

Júlia Lemmertz – O amor pode ser bárbaro… 

Marcos Bernstein – … ou barbárico.