Confira tudo o que ocorreu nos quatro primeiros dias no Diário de Bordo: Festival de Karlovy Vary – Parte 1

O dia 5 começou na Congress Hall do Hotel Thermal com a sessão de “The Father”, comédia búlgara que se tornou rapidamente uma das minhas produções favoritas da programação. Fiquei tão impressionado com o que eu vi que marquei uma entrevista com os diretores para o dia seguinte, o que anunciei numa reunião com Neil Young, crítico da revista The Hollywood Reporter e o nosso tutor do GoCritic!, e a turma logo em seguida.

Meu filme seguinte foi “In the Arms of Morpheus”, documentário holandês sobre pessoas que tinham dificuldade para dormir. A ironia foi ter que resistir ao sono enquanto o assistia. Minha ideia era fazer uma crítica dele para o GoCritic!, mas acabei mudando de ideia durante a sessão. Voltei para o hotel para tentar uma sonequinha, mas nao tive muito tempo, pois o grande compromisso do dia estava próximo: uma sessão de “Parasite”, de Bong Joon-Ho que levou a Palma de Ouro em Cannes.

Neil tinha comunicado Jan Najman, coordenador da imprensa internacional do festival, sobre a intenção de vermos o filme, então conseguimos uma incrível façanha: lugares reservados em uma sessão pública de um filme super badalado. A sala estava bem quente por conta da lotação e tinha muita gente sentada no chão, mas valeu a pena. O filme é incrível e merecedor da aclamação que tem recebido.

Neil nos reuniu para um jantar depois do filme e comemos num lugar pitoresco, meio escondido dentro de um beco, não muito longe do hotel. Sobrava carne de porco e, de lá, eu, Daniel (outro selecionado para a tutoria) e Neil voltamos para o Hotel Thermal para uma saideira que viraram, claro, duas. Depois, eu e Daniel seguimos para uma sessão de meia-noite de “Rambo: Programado para Matar”, que decidimos ver de última hora e curtimos bastante.

O início do dia 6 foi mais tarde: às 11h teve a sessão de “O Traidor”, também conhecido como ‘o Filme Italiano com a Maria Fernanda Cândido’. Confesso que achei bem-feito, mas um tanto comum e que decididamente poderia ter meia-hora a menos. Achei que Maria Fernanda iria falar italiano, mas nem: sua personagem era brasileira. Segui de lá para o escritório do Jan, onde eu entrevistei Kristina Grozeva e Petar Valchanov, diretores de “The Father”. Na saída, procurando algo para comer na área fora do Thermal, troquei ideia com um publicista que também tinha assistido a “Parasite” no dia anterior.

Tive que cortar o papo pela metade e correr para o luxuoso Grand Hotel Pupp. O lugar, além de receber as cerimônias de abertura e encerramento do festival, também transforma um de seus salões em cinema e lá assisti “O Cremador” – um clássico da Nova Onda Tcheca feito na década de 1960 e recentemente restaurado. Não sabia nada sobre ele, mas fui assistir porque Neil e Vladan, crítico do Cineuropa e responsável pela ponte entre a nossa produção e o site, me recomendaram muito, bem como Daniel, que o reconhece como um dos melhores longas produzidos em seu país. Sai de lá chocado com o roteiro e com a excelente edição.

Meu filme seguinte, no Grand Hall do Thermal (mesmo lugar onde assisti “O Traidor” mais cedo), foi a vez do chileno “The Man of the Future” – um dos raros exemplares da América Latina na programação deste ano. Fiquei com vontade de discutir o filme com o diretor e consegui marcar uma entrevista com ele para o dia seguinte. Na saída da sessão, me reuni a sós com Neil para revisar minha crítica de “La Belle Indifference” e ele mudou de estratégia: ao invés de me dar notas para revisar depois, fomos analisando e alterando o texto juntos, para a versão final ficar pronta logo. Terminei o dia com o novo longa do Peter Strickenland, “In Fabric”, que parece um pesadelo fetichista chique. Outro dos meus favoritos.

Enfim, ele chegou: dia 7 de julho. Meu dia mais cheio, em que eu teria que conferir cinco filmes. Comecei novamente no Grand Hall para ver Mortos não Morrem, filme irregular de Jim Jarmusch que abriu o Festival de Cannes esse ano e, quando saí, voltei para a mesma sala para conferir “Monos”, o louco filme colombiano que me deixou bastante estarrecido. Por conta dele, tive que me ausentar da típica reunião com Neil e a turma, que aparentemente, sem as minhas intervenções, acabou cedo, já que eu e meu tutor estávamos na sessão de Spoon“.

Estava  caçando um documentário para escrever após a decepção com “In the Arms of Morpheus” e o Neil me sugeriu esse. Foi uma escolha melhor, mas não muito, ainda que eu tivesse material suficiente para produzir uma boa crítica dentro do deadline.

Segui direto para o escritório do Jan, onde eu entrevistei Felipe Ríos, diretor de “The Man of the Future”, e depois aproveitei o final de tarde para escrever dois textos para o Cineuropa. Segui para o Národní Dům, outra das salas do festival que fica dentro de um hotel, para ver o tcheco “Old-Timers”, que me surpreendeu bastante. De longe, a comédia mais engraçada do festival, com bastante subtexto político.

Neil sugeriu mais um jantar, dessa vez em um bar localizado bem longe da zona do festival – na “Karlovy Vary de verdade”, segundo ele. Eu e Dunja, mais uma participante da turoria, chegamos lá antes de todo mundo, pois, aparentemente os demais haviam feito um pit stop em outro bar. Esperamos por lá e pedimos uma pizza do outro lado da rua, onde o vendedor não tinha cara de muitos amigos e nao falava nada além de tcheco.

Quando ela ficou pronta, fui buscar e trouxe de volta para o nosso bar, onde todos já haviam chegado. Acabamos pedindo outra, que levaria mais ou menos uma hora para ficar pronta. Nesse ínterim, a garçonete do bar faloou que não nos serviria mais e disse em tcheco ao Daniel que eles iriam fechar, porém, continuamos a ver outras mesas sendo servidas.

Neil, Vladan e outros dois amigos críticos resolveram ir para outro lugar, na mesma rua, por conta disso, enquanto eu, Daniel, Dunja e Veronika ficamos lá por conta da segunda pizza, que ainda não tinha ficado pronta. As meninas estavam convencidas de que, se nem Daniel tinha conseguido mais cerveja sendo nativo, iriamos ficar secos até irmos embora. Na base do “o não eu ja tenho”, eu resolvi ir ao balcão na base do charme e, quando lá cheguei, não precisei nem abrir a boca: a garçonete me viu e somente levantou dedos querendo saber quantas cervejas eu queria. Acabei conseguindo uma para cada um de nós, bem em tempo de pegar a pizza do outro lado da rua.

O plano para fechar a noite era pegarmos a sessão de meia-noite de “A Bruma Assassina”, clássico de John Carpenter, e como já eram 11 e poucos e estávamos longe do centro da cidade, precisávamos correr. Praticamente viramos a cerveja e saímos pela rua com fatias de pizza na mão, comendo enquanto nos dirigimos ao Cas, cinema que exibirá o filme. Tinha tanta gente na fila de espera que uma garota que estava nela fingiu ser funcionária do cinema e tentou me pedir, em tcheco, meu ingresso para pegá-lo, mas brasileiro não cai nesta, certo? O filme foi divertido, ainda que não tenha envelhecido tão bem quanto eu presumi.

Com o dia mais agitado vencido e com somente mais dois incluindo filmes, não tinha como encarar de outra forma: o festival estava na reta final. Eu tinha sentimentos ambivalentes com relação a isso. Por um lado, eu estava tão cansado e sem dormir que a volta à normalidade de Londres parecia um afago. Por outro, como vou mentir? Cinema é minha paixão primeira e passar tantos dias envolto num evento que respira a Sétima Arte é um privilégio. Além do mais, como eu sou bonachão, eu já estava com saudade da minha equipe de críticos.

Pensando em tudo isso, comecei o dia 8 com uma reunião com Neil e a turma na hora do almoço e de lá segui para o Grand Hall para ver A Vida Invisível de Eurídice Gusmão, o novo longa de Karim Aïnouz que levou o grande prêmio na mostra Un Certain Regard em Cannes este ano. Como de praxe no festival, um monte de gente sem ingresso se reuniu nos corredores do cinema esperando o anúncio, feito cinco minutos antes do início da sessão, que os autoriza a ocupar os lugares vagos. Acredito que valeu a pena para eles: o filme é muito emocionante e ainda vem com uma ponta de luxo da Fernanda Montenegro pra fazer a gente chorar.

Descobri, por acaso, que Karim tinha ido ao festival e comuniquei Jan de imediato tentando garantir uma entrevista. Ele me respondeu que o diretor só tinha estado lá durante um dia, mas que ele poderia responder minhas perguntas por e-mail, então as mandei prontamente.

Passei no hotel para um cochilo e voltei para o Thermal para uma sessão de Matrix“, que eu nunca tinha visto na telona, e saí de lá para encontrar meus parceiros de GoCritic! para a nossa última sessão de meia-noite. Dessa vez, o filme era “The Lodge”, novo terror dirigido por Veronika Franz e Severin Fiala, responsáveis por um dos melhores exemplares do gênero da última década, “Boa Noite, Mamãe“. Enquanto o filme não chegue aos pés do anterior, há vários momentos tensos e é ótima pedida para se ver em grupo.

O dia 9 começou com um café da manhã na frente do Teatro Municipal de Karlovy Vary para a última reunião profissional coletiva com Neil (nos encontraríamos de novo para jantar) e seguimos para a sessão de “Cairo Station”, considerado a obra-prima de Youssef Chahine, mestre do cinema egípcio. Segui de lá para revisar meus últimos dois textos com Neil e, de lá, outra soneca para acordar no início da noite e para encontrá-lo, juntamente com Vladan e a turma, numa mesa de bar.

O bar ficava embaixo de uma ponte, perto de um palco improvisado que, naquele dia, estava sendo dividido por uma três ou quatro bandas de hardcore tcheco (sério). Pensamos em jantar em outro lugar, mas acabamos ficando por lá mesmo até a hora de todos, menos Neil, partirem para grande festa de encerramento, com direito a black tie.

Logicamente, acordei com uma senhora ressaca no outro dia e vi Daniel fazendo a mala. Todos deixariam Karlovy Vary pela manhã, menos eu, que ficaria mais umas horas. Na hora em que acordei, só me restavam 50 minutos para recolher minhas coisas e fazer o check-out, o que eu consegui a muito custo.

Meu voo para Londres estava marcado para às 19h55. Para chegar na hora, eu deveria sair da cidade rumo a Praga entre 16h30 e 17h, mas os últimos carros fornecidos pelo festival sairiam de lá às 14h. Como todo mundo que já pegou carona na vida sabe, é melhor garantir o trajeto e esperar, então acertei com a organização do evento que sairia no último carro.

Ainda assim, eram 11h e eu tinha muito tempo. Andei pela cidade, descolei um almoço e acabei descansando num banco de praça até o carro chegar. Dormi o trajeto inteiro até o aeroporto e fiquei semidesperto todo o tempo lá até a hora do check-in.

Depois que despachei a mala, o tempo passou mais rápido. O avião atrasou meia-hora (bem melhor do que as duas horas na ida), mas não me importei porque dormi logo em seguida e só acordei em Londres. Uma vez lá, precisei esperar uns 20 minutos pelo trem para a minha casa, mas já nele, todo o trajeto foi bem rápido e, quando vi, a jornada tinha chegado ao final.

Karlovy Vary foi uma experiência peculiar em vários aspectos. Foi a minha primeira vez desde Cannes, há dois anos, que viajei para um festival e, como eu comentei anteriormente, essa é a situação ideal para imergir em um evento desse tipo.

Na França, estava sozinho, mas aqui, fazer parte de uma equipe que trocava ideias todos os dias, conversava sobre gostos cinematográficos e histórias de vida, decidia conjuntamente sobre a cobertura e ainda saía para se divertir foi novo e energizante. Eu pude descobrir muita coisa com meus companheiros, já que, dos quatro participantes, eu era o único que não tinha nenhum vínculo com o Leste Europeu – Daniel, apesar de ter cidadania americana, foi criado em Praga.

E o que falar dos filmes? Tive acesso ao cinema de países como Bulgária e Latvia e isso me deu uma fome de saber mais sobre a região. Foi um tapa na cara ver o quão ocidental é a minha cinefilia e me pus bem humilde a pedir dicas da minha turma. Claro, também recomendei alguns longas, para que eles conheçam o Brasil além de Cidade de Deus – ainda que Dunja tenha me surpreendido e me recomendado Histórias Que Nosso Cinema Não Contava“, um documentário brazuca que eu nem conhecia.

A informalidade deu o tom de um festival descontraído que tem muito mais a ver com o envolvimento com o público do que com o glamour e o showbiz. Vários espectadores estavam aproveitando a onda de calor na cidade e indo para as sessões de shorts e chinelo. Eu acabei entrando na onda e usando a única bermuda que levei na maioria dos dias, tanto que ela acabou rasgando durante o último jantar.

Com os direcionamentos do meu tutor, pude me aventurar mais na programação. Ver mostras que focam em filmes antigos, conferir retrospectivas, prestigiar programações paralelas às seções competitivas: todas essas são lições que deram ótimos frutos aqui e que levarei adiante.

Agradeço imensamente às pessoas que foram cruciais por lá e cujos nomes vocês já leram bastante nesse Diário de Bordo: Daniel, Dunja, Jan, Neil, Veronika e Vladan. Agradeço também à iniciativa do GoCritic!, do site Cineuropa, que me selecionou dentre tantos jovens críticos europeus e me deu a chance de viver essa aventura.

Tendo dito tudo isso, o Festival de Karlovy Vary chegou ao fim, mas a cobertura ainda não! Eu vou passar as próximas semanas escrevendo sobre o que vi por lá, então vocês ainda vão conferir essas críticas por aqui, bem como as entrevistas. Grande abraço!

*O jornalista viajou para o Festival de Karlovy Vary como parte da equipe do GoCritic!, programa de fomento de jovens críticos do site Cineuropa.

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