O que parecia improvável até algumas semanas atrás aconteceu: “Coda – No Ritmo do Coração” superou “Ataque dos Cães” e se torna o improvável Melhor Filme. A grande pergunta reside no seguinte: como isso aconteceu? 

Talvez o segredo esteja no sistema de votação da Academia para Melhor Filme: os votantes escolhem seus favoritos a partir de listas preferenciais, ou seja, você elenca, pela ordem, do filme que você mais gostou até aquele que mais te desagradou. Logo, se sai bem quem consegue ficar nas primeiras posições mais vezes. 

Goste ou não, “Coda” é um filme fácil de se ver e gostar. Tem uma história conduzida de forma clássica, mas, bem-feita pela Sian Heder, com um elenco muito bem entrosado em que todos estão ótimos – não à toa venceu o prêmio máximo do SAG -, dosa bem humor e drama, enfim, uma produção redonda para agradar todos os públicos – tanto que ganhou o Sindicato dos Produtores. Soma-se ainda a temática da inclusão social tanto no tema do filme como na escalação dos atores surdos. 

Já “Ataque dos Cães”, o então favorito, é uma obra de um ritmo mais cadenciado que exige do espectador maior atenção para montar o quebra-cabeça com as sutis pistas oferecidas pela Jane Campion ao longo da trama. Inevitável pensar também que oferecer um novo olhar sobre o cowboy norte-americano, aqui, repleto de desejos reprimidos em relação à sexualidade, desperta horror da classe mais conservadora da Academia. Logo, estamos diante de uma obra divisiva que iria, ao mesmo tempo, ser abraçada e odiada por muita gente. 

FIM DA RESISTÊNCIA AO STREAMING 

A vitória de “Coda” ainda tem o fator simbólico de ser a primeira conquista de um serviço de streaming no Oscar de Melhor Filme. Curiosamente, a conquista vai para a Apple, estúdio marcado por campanhas não bem-organizadas, mas que encontrou na produção estrelada pela Emilia Jones um grande candidato. Já a Netflix ficará mesmo com o ódio após ver, mais uma vez, outro grande investimento como ocorrera com “Roma”, “O Irlandês” e “Os Sete de Chicago” nos últimos anos.  ser deixado de lado. 

Diferente do que ocorrera em 2019 quando a briga cinema e streaming ainda fazia sentido, hoje, com a pandemia da Covid, o debate praticamente se tornou supérfluo dentro da indústria. Evidente que existe a questão do tempo da janela de exibição e a preferência dos diretores em lançar suas produções nas telonas, mas, negar estas plataformas digitais soa mais como birra de quem deseja ficar preso ao passado, especialmente, com as reconfigurações trazidas no nosso dia a dia pela Covid-19. 

Por outro lado, sou contrário ao endeusamento destas plataformas como salvadoras da lavoura ou de serem vistas com uma produção muita acima dos demais players do mercado. Para um grande filme, somos colocados diante de verdadeiras bombas na Netflix, Apple, Prime Vídeo e streamings do gênero. Também é importante citar toda a questão da regulação delas, especialmente, no Brasil que precisa ser feita para não prejudicar a indústria nacional. 

FOI JUSTO OU NÃO? 

Certamente muita gente deve estar horrorizada com este resultado, mas, sinceramente, não vejo tanto absurdo assim. “Coda”, de fato, não é aquele candidato com cara de Oscar que se espera que ganhe o prêmio máximo. Nesta temporada, além de “Ataque dos Cães”, esperava-se isso de “Amor, Sublime Amor”, “Belfast” e até de “O Beco do Pesadelo” e “King Richard” quando, claro, estes surgiram na temporada. 

Mas, talvez, seja justamente nesta imprevisibilidade, nesta quase acidente de atingir algo que sequer era imaginado quando o filme surgiu em Sundance 2021 que me encanta em “Coda”. Ao mesmo tempo, reconheço que deve ficar na segunda prateleira de ganhadores da história do Oscar ao lado de filmes corretos, mas nada brilhantes, como “O Bom Pastor”, “Golpe de Mestre” e “Nomadland”, mas, jamais na lista dos fracos como “Cimarron”, “Miss Daisy”, “Crash” e “Green Book”.  

Por outro lado, é uma tristeza ver a derrota de “Ataque dos Cães” por dois importantes prismas: Jane Campion não ser premiada em Melhor Filme ainda que tenhamos mais um longa dirigido por mulher vencedor do Oscar e novamente um western revisionista sobre o desafio ao paradigma do cowboy machão norte-americano perder o prêmio, tal qual ocorrera com “O Segredo de Brokeback Mountain”. A Academia ainda tem um longo caminho a percorrer diante de seus tabus.