Novembro chegou, já se encaminha para o fim e com ele a lembrança que “vidas negras importam”. No Brasil, o Dia da Consciência Negra é comemorado em 20 de novembro. Só que vidas negras existem para além dos 30 dias do 11° mês do ano. Existem os 365 dias. E quem enxerga o corpo negro? Quem, de fato, colabora com a luta antirracista? Quem busca corrigir termos, brincadeiras, ofensas e crimes para com a pele que sangra diariamente?

O histórico do negro na sociedade brasileira perpassa por muitas dores e violências simbólicas e explícitas que corroem seus corpos, suas identidades e o direito de existência.

Uma breve aula de história: o Brasil foi o país do mundo que mais sequestrou escravizados da África – mais de quatro milhões. E o último país a aderir a Abolição, muito por conta de pressões políticas da época, em 1888. Façam as contas! No Amazonas, um pouco antes disso, 1864, ainda assim, a contragosto dos senhores que foram remunerados, sim, remunerados para libertar seus escravizados.

O Brasil foi forjado no mecanismo do processo civilizador branco eurocêntrico. Os grupos étnico-raciais, negros e indígenas, são historicamente grupos que sofreram as mais diversas formas de violências. A hegemonia branca com todo o seu poder e síndrome da casa grande ainda impera em nossa sociedade. O racismo está enraizado nas entranhas dessa terra por conta de interesses dominantes que não se importam com vidas negras. Devo lembrar que, após a abolição, muitos escravizados não tinham para onde ir, sendo as ruas a principal morada de muitos. Eis aí o surgimento das favelas e também por conta da descentralização da população menos favorecida para áreas afastadas do centro da cidade para não sujar a sua imagem de uma cidade limpa com ares europeus.

Quem os vê? Quem os ouve?

O sociólogo francês Le Breton diz que o corpo é um corpo social e moldado na esfera social em que estamos inseridos. Portanto, o corpo negro foi forjado à subserviência. Seu corpo é subtraído, negligenciado, invisibilizado e marginalizado. Corpos aparentemente sem nome que atendem por apelidos maldosos e de teor racista. Corpos animados ao olhar da branquitude. Corpos herdeiros de um extermínio histórico que ainda está em vigor nos dias atuais. Negros são os principais alvos do genocídio da polícia, dos olhos inquisitivos nas ruas, na perseguição dos seguranças nas lojas que se sentem livres para matar asfixiado um jovem negro. A regra é muito clara no Brasil, se tratando da população negra há livre passe para o seu extermínio. A limpeza social do final do século XIX continua firme em no século XXI.

Suas existências e suas vozes ressoam e ecoam na multidão. Quem os vê? Quem os ouve? A existência no povo negro é uma eterna luta abolicionista para quebrar estas correntes violentas que corroboram com a barbárie cotidiana. Sufoca. E esse sufocamento é proposital. Suas vozes não são importantes e quando escutadas são considerados pretos raivosos, que não aceita o diálogo, reafirmando a posição de agressivos do negro, afinal, o branco é sempre muito bem quisto e com a melhor das intenções, né? Estão aprendendo, afinal.

E a “abolição” foi em 1888. E ainda estão aprendendo…

A ‘ausência de intenção’

Tem uma fala muito interessante da escritora nigeriana Chimamanda Adichie que diz o seguinte: “Eu tendo a cometer o erro de achar que uma coisa óbvia para mim também é óbvia para todo mundo”. É tão óbvio que ser negro no Brasil é ser estigmatizado e marginalizado e sofrer diariamente preconceito racial que, na nossa cabeça, pessoas minimamente inteligentes deveriam saber que isso é um fato. Mas a existência do outro não importa, o outro corpo, aquele da cor da noite que tem na estrutura da sociedade sangue derramado dos seus ancestrais, não importa. E isso é tão óbvio, não? A branquitude se protege e não abre mão dos seus privilégios e isso é óbvio. Não importa a classe social (mais uma coisa forjada da colonização): ser branco o coloca dez degraus acima, mesmo sendo medíocre.

Há algum tempo percebi (e não somente eu) que alguns colegas do Cine Set ao longo dos seus textos usavam termos que hoje são considerados racistas, como humor negro, por exemplo. Reclamações devidamente repostadas ao editor-chefe que, prontamente atendeu ao meu (nosso, reforçando que não foi uma inquietação apenas minha) chamado, são termos que perpassam por dores coloniais e só reforçam o quão a sociedade é tão racista que os normatiza.

Pois bem, recado dado. Quem se manifestou? Pois é, ninguém! Mea culpa? Aqui não, queridos. Silêncio total. Assim como ficam em silêncio quando corpos negros morrem diariamente no sistema opressor, quando sofrem racismo nas lojas, calados nas piadas infames, etc. CALADOS.

Ah, mas não foi por mal! Estou aprendendo! Não foi intencional! Foi inconsciente! Não sabia! Como sempre, a branquitude tem a carta aberta para errar e tá tudo bem, não é mesmo? Lembrando da fala de Frantz Fanon que diz, “[…] é justamente esta ausência de intenção, esta desenvoltura, esta descontração, esta facilidade em enquadrá-lo, em aprisioná-lo, em primitivizá-lo, que é humilhante”. Compreende? A ausência de intenção é que faz com que meninas e meninos negros cresçam com vergonha de sua cor, de sua origem e do seu cabelo crespo. É dentro desse padrão não intencional que reside o perigo da bondade/ingenuidade (vamos rir agora) branca. Nunca é por mal. Mas as feridas crescem conosco e nunca cicatrizam, inflamam. Pois o contexto social o cutuca diariamente nessa domesticação do negro servil, que deve aceitar seus desmandos.

Não se pode mais tolerar esses tipos de comportamentos. Pois, “[…] tolerar o mal é um mal, quase tão grave quanto o fato de cometê-lo”, já diria Monique Canto Sperber e Ruwen Ogien. Há uma cumplicidade implícita nessa tolerância e silêncio em não se enxergar como parte do problema, um pacto social sádico dominante que, no final do dia, quem morre com bala perdida na cabeça são crianças negras. E quem se importa? Quem fala alguma coisa? Silêncio total.

Consigo sentir você lendo esse texto revirando os olhos e inquieto, afinal, não é tão antirracista como se dizia, né? Meus caros vos digo: não são! Angela Davis já diz que é necessário ser antirracista e, para que isso se torne uma lógica dentro do seu eu, é preciso se perceber racista, pois você é! Continuar tolerando tais atos seja seu, de amigos, familiares e próximos vai te fazer tão racista quanto os outros. Vidas negras importam para você?

A impressão que se tem é que muitos se intitulam antirracistas somente para cumprir um personagem aliado, se sentir menos ruim dentro de sua existência cercada por privilégios que nunca sentirá na pele 1% das violações que o corpo negro sente. Um lugar confortável, não é mesmo?

Nessa luta, é fundamental perceber o poder desse discurso excludente e exploratório. São vidas que estão sofrendo. É muito além de palavras pejorativas, termos em desuso são vidas! E vou me repetir, são vidas!

MILITÂNCIA de uma vida

Mais uma vez, consigo te ouvir: lá vem a militância!

Prezados, a vida preta é uma eterna militância; se não fosse pelos ancestrais na luta, resistindo em existir e vivendo por direito nesta terra, não estaríamos aqui. Então, sinto em lhes dizer, é militância sim! Se você sabe que a identidade do Brasil é negra e indígena, então não compactue com a manutenção dessas violências que está envolvida no mito da democracia racial e que todos aqui têm as mesmas oportunidades e direitos. E vos pergunto, democracia racial? Quando existiu?

É importante (re)pensar a identidade, um dos pilares da representação do indivíduo e suas referências sociais, culturais, políticas e simbólicas. Quando tudo isso é apagado em prol de uma identidade que não é sua, o que resta senão crescer bombardeado de crenças e costumes impostos que não condizem com sua ancestralidade, um estranho no ninho dentro de sua própria pátria. Mas será mesmo que no povo negro é um estranho nesse ninho? A própria ancestralidade sofreu com esse plano de apagamento resistindo ao tempo e violência na sua permanência através daqueles que resistiram para que possamos estar aqui falando de identidade, conexão e, principalmente, resistência.

A branquitude, aquela que normaliza termos racistas e sequer se enxerga ou pede desculpas, no fundo do seu âmago não quer e não está preparada para ver negros assumirem o protagonismo de suas próprias vidas, ocupar espaços em âmbito artístico, político e intelectual. O desconforto, para não dizer outra palavra, solidifica esse pensamento estruturado na sociedade legalmente e orgulhosamente racista.

É preciso movimentação.

E não há mudança sem movimentação, inquietação e compreensão das repressões ao corpo, aqui, social e político, dos sujeitos. Experiências e vivências são diversas, unas e subjetivas, mas, no plano social nacional há a estigmatização da vivência negra que renegam suas subjetividades e transformam todos os corpos em um. Este um que pode ser violentado, são negros…

Quando se reconhece essa gama de desserviços que inferiorizam o sujeito, se percebe a necessidade de dar voz e se fazer ouvir para que sejam expostos todos esses princípios fundamentais de uma sociedade elitista: a total exclusão daqueles menos favorecidos que, historicamente, é a população negra.

Para além dos autores citados, há infinitos outros autores que podem lhe auxiliar, afinal, você quer aprender, certo? Aprender a compreender o quão necessário e urgente é esse diálogo da questão do negro na sociedade, já passou da hora em assumir sua importância histórica, social, cultural e política por aqui, e colaborar com a erradicação de usos de termos racistas que não serão mais tolerados.

Abaixo uma cartilha de como substituir termos racistas e para, além disso, as piadas, a sexualização do corpo negro, o olhar de desconfiança, a negação de sua intelectualidade e capacidades são cruciais na sua luta antirracista. Você vai continuar nesse pensamento atrasado?