Parece que foi em outra vida, mas, há 14 anos “Nosso Lar” chegava aos cinemas brasileiros e atingiu impressionantes 4 milhões de espectadores. O país atravessava um período de normalidade democrática, otimismo por conta do crescimento econômico e a extrema direita vivia em seu esgoto.

“Nosso Lar 2 – Os Mensageiros” encontra um outro Brasil neste janeiro de 2024, especialmente, no campo religioso com uma crescente intolerância e radicalismo, além da influência política. Ainda assim, os primeiros números nas bilheterias mostram como a produção baseada na série psicografada por Chico Xavier possui um público fiel – 160 mil ingressos vendidos apenas no dia de estreia.

O Cine Set teve a honra de conversar com o diretor Wagner de Assis para saber mais sobre a produção e os desafios de “Nosso Lar 2” e a expectativa para saber como será a reação deste novo Brasil à série.

Cine Set – Mais de uma década separa o primeiro do segundo filme. Por que retomar a “Nosso Lar”? Algo mudou da ideia original para o resultado final? 

Wagner de Assis – Mudamos uma década literalmente (risos). As mudanças acontecem na forma de ver o mundo, contar histórias, o cinema se atualiza, a linguagem ganha detalhes ali e acolá. A única coisa que não muda é a minha percepção de que se trata de uma história incrível. Gostaria de ter iniciado “Nosso Lar 2” antes mas, a indústria não deixa com que a gente sonhe e realize do modo como desejamos no tempo pretendido.  

Por outro lado, este atraso me beneficiou de várias maneiras, pois, me levou a fazer outros filmes, experimentar linguagens, amadurecer o recorte sobre o segundo livro da série. Logo, era preciso deixar um pouco de lado o que foi apresentado no primeiro filme, fazer uma conexão dramática e visual entre as obras, buscando o que a década de 2020 traz. Passamos por fenômenos absurdos na nossa sociedade, o que impacta na obra de alguma maneira.  

Cine Set – Gostaria que você falasse sobre a importância de “Os Mensageiros”, segundo livro da série “A Vida No Mundo Espiritual”, para o espiritismo. 

Wagner de Assis – A coleção inteira é muito potente e representa muito dentro da obra que o Chico Xavier psicografou. Ao todo, são 536 livros psicografados por ele, sendo 16 deles partes da série do espírito André Luiz. São obras muito reveladoras com diversas informações e, ao mesmo tempo, consegue ser educativa e dramática por serem histórias de pessoas que eles vieram visitar. Eu adoro particularmente. 

“Nosso Lar” e “Os Mensageiros” são quase como um livro único. No primeiro livro, o André Luiz conta a própria história e do mundo espiritual – o Umbral, as cidades astrais. Nesta segunda obra, ele integra uma missão de resgate em direção à Terra contando, agora, a história dos outros. São três pessoas retratadas com seus problemas. Há, por exemplo, aqueles que tinham acordos prévios com os Mensageiros – eles, aliás, também podem ser chamados de anjos da guarda, protetores, mentores.  

Logo, o André Luiz se torna uma espécie de narrador in loco de uma missão liderada pelo Aniceto, um espírito evoluído interpretado pelo Edson Celulari. No fim das contas, “Nosso Lar 2 – Os Mensageiros” é uma história sobre amor, perdão, planejamento das vidas. Todos esses temas são universais, independente de doutrina religiosa, pois, nos questionam sobre o que estamos fazendo com nossas vidas e como estamos cuidando daqueles ao nosso redor. 

Cine Set – Como foi reunir toda a equipe de “Nosso Lar” de volta após mais de 10 anos do primeiro filme? E o que tempo trouxe de evolução para este time até mesmo em relação ao conhecimento sobre o espiritismo? 

Wagner de Assis Acabou sendo um filme novo em termos de produção. Voltaram apenas três atores em relação ao primeiro “Nosso Lar”: o Othon Bastos (Anacleto, governador de Nosso Lar), o Renato Prieto (André Luiz) e o Carlos Tenório (guardião do Umbral). Escalar o restante do elenco para os novos personagens é sempre desafiador; considero ser um dos momentos mais dolorosos porque são aquelas decisões que ficam para sempre. 

Não acho que o personagem escolha seu intérprete. São demandas, momentos, encontros muitos específicos. Inicialmente, eu não trago para a mesa de debate qual a postura filosófica e espiritual daquele profissional. Trato como um filme qualquer em que preciso ver qual intérprete se encaixa para aquele papel, procurando a química entre eles, além da questão de agenda de cada um.  

Agora, se houver interesse durante o processo de realização em conhecer mais sobre a obra do Chico Xavier, há as rodas de conversas em que estas questões são levantadas. Como eu disse, são questões universais como, por exemplo, o que acontece após a morte, as leis físicas e espirituais ou sobre se existem dimensões paralelas convivendo com a gente. Isso tudo, aliás, está presente no filme.  

É um processo que gosto muito e venho acertando a escalação ao notar como os artistas se sentem confortáveis ao trabalhar nos meus filmes. O filme acaba acrescentando na vida de todos. 

Cine Set – O primeiro filme traz um cuidado visual de efeitos visuais, figurino, design de produção muito bem construídos e que chamam a atenção. Gostaria que você falasse sobre estes setores para o segundo filme: o que você mais destaca e o que podemos esperar? 

Wagner de Assis – Em 2009, na pós-produção de “Nosso Lar”, eu descobri que não havia um lugar no Brasil onde pudesse fazer o filme do que jeito que queria no tempo que era necessário. Não havia máquinas, render, profissionais específicos. Treze anos depois, fica notório como tivemos uma revolução nesta área para além do salto tecnológico. 

Claro que não deixou de ser sofrido; é uma dor criativa diária. Existe um fluxo de profissionais que vai-e-vem muito rapidamente e a tecnologia permite aos brasileiros que conquistem espaço no mercado internacional. Ainda assim, optamos por realizar “Os Mensageiros” no Rio de Janeiro com uma equipe fruto desta geração surgida nos últimos anos. 

O desafio agora era enorme, pois, era necessário manter o padrão do original e ainda evoluir para o que se entrega atualmente em efeitos visuais. Para isso, é necessário recursos, afinal, é um investimento grande. Quem trabalha com cinema sabe que, às vezes, é necessário refazer para melhorar ou mudar algo, mas, as contas são muito altas. Todo encaminhamento de preparação é meticuloso e os erros não podem acontecer. Até o início de dezembro, estava finalizando certas sequências.   

“Nosso Lar 2 – Os Mensageiros” é feito praticamente todo em rotoscopia para dar as texturas espirituais aos personagens na Terra. Não tem sido simples e fácil, mas, está potente e bonito. Existe sempre aquele dilema do muito espiritual que pode não parecer real e do muito real que pode não parecer espiritual. Isso navegando em um mar de cognição e imagética com um grande grau de ineditismo, afinal, as obras do Chico são propriedades intelectuais genuinamente brasileiras e até então nunca realizadas. 

De qualquer forma, estamos entregando um projeto à altura do que o público espera, incluindo, também a linguagem bastante ágil e moderna.  

Cine Set – Quanto tempo durou todo este processo de pós-produção ligado aos efeitos visuais? 

Wagner de Assis – Tem sido o nosso dia a dia há um ano. São mais de 100 pessoas envolvidas no trabalho.  

Cine Set – Li uma entrevista sua que “Nosso Lar” vai muito além de um filme espírita, sendo para todos os públicos por trazer drama, ação e emoção. Como espera que seja a recepção do público em um país bem diferente de 2010, onde o discurso de certas correntes religiosas soa, muitas vezes, intolerantes? O que a sequência pode contribuir para quebrar estigmas? 

Wagner de Assis – Essa é a pergunta de US$ 1 milhão (risos). Admito que não tenho resposta objetiva para ela. As análises de cenário podem ser complexas e simples simultaneamente. O Brasil passou por uma pandemia e um pandemônio, sendo que este último afetou a produção cultural. Por outro lado, estamos aqui produzindo, contando nossas histórias. 

Se não inserirmos o componente espiritual para além do religioso na nossa diversidade, a tendência é que a gente caia nos mesmos vícios de divisão, gritando ‘nós ou eles’, ‘você não presta, eu presto’, ‘a minha verdade é melhor do que a sua’, etc. Infelizmente, dentro do sofrimento há crescimento e acredito que, depois de tanta dor nos últimos anos, possamos viver um período de renovação, entendimento e, talvez, tenhamos uma sociedade capaz de olhar para este filme com suas mensagens universais.  

“Nosso Lar 2” mostra como somos vítimas e algozes de nós mesmos, que somos responsáveis pelos nossos atos, o Deus de um é o Deus de outro e como isso impacta nas relações sociais. Se o cinema puder ajudar a refletir questões existenciais, como por exemplo quem eu sou no mundo, já é um bom caminho.  

Um filme é filho de seu tempo e, por isso, acho que há sentido da continuação ser lançada agora e não em 2011. O subtexto de que somos e morreremos todos iguais está presente em “Nosso Lar 2”, mas, claro que existem sim diferenças e devemos respeitá-las.  

Aprendo muito com o público nos cinemas: até hoje, recebo mensagens de pessoas tocadas pelo filme original. A espiritualidade sem sectarismo ou proselitismo é algo que gosto de explorar nos meus trabalhos. Considero um tema fundamental a ser explorado e, caso estas obras ajudem a fazer pessoas melhores e colaborar para uma melhor convivência social, será algo muito bom.