O título nacional do filme Devorar é impreciso e sensacionalista, como muitas vezes acontece. O original em inglês é “Swallow”, que significa literalmente “engolir”, e esse é o drama na vida na protagonista da história. É um filme que combina um olhar sobre um transtorno psicológico real, a alotriofagia, o ato de se engolir objetos estranhos a uma história de tons feministas sobre uma mulher que não é dona do próprio corpo. É sobre uma jovem mulher que engole muita coisa na vida. E o que é engolido, um dia precisa sair.
No filme, Hunter (interpretada por Haley Bennett) parece levar uma vida perfeita. Vive com o jovem marido (Austin Stowell) numa casa luxuosa. Ele está indo bem no trabalho. Os sogros dela estão sempre por perto. Já ela não faz nada, só fica em casa. Todos parecem estar bem… Até que ela engravida e as coisas começam sutilmente a mudar. Hunter não demonstra nenhuma euforia em particular pelo fato de estar grávida. A casa com paredes de vidro passa a transmitir a ideia de que não há lugar para ela se esconder. E uma noite, no jantar, ela mastiga um cubo de gelo. Depois, engole uma bolinha de gude. E daí para frente a situação só piora, com a protagonista repetindo o ato de engolir objetos aleatórios e colocando cada vez mais a saúde em risco.
É um filme incômodo em diversos momentos. Algumas cenas da compulsão da protagonista chegam quase a despertar lembranças de um “horror corporal” ao estilo David Cronenberg. No entanto, a proposta do diretor Carlo Mirabella-Davis, também autor do roteiro, não é de fazer um terror. O objetivo é fazer um estudo psicológico da protagonista, uma figura passiva oprimida pelo seu papel de esposa e mãe. Ao longo da história descobrimos informações sobre a personagem, e cada vez mais vai ficando clara a intensidade do problema dela. A sua vida perfeita também vai desmoronando aos poucos, com seu marido perfeito se revelando um grande babaca.
DUPLA PERCEPÇÃO
Mirabella-Davis filma essa história de maneira inteligente, com o auxílio de um bom trabalho de direção de arte e fotografia: a casa transparente, aliada aos tons frios da imagem, ajuda a transmitir e magnificar o estado interior da personagem. Ainda que, aqui e ali, pesem a mão alguns simbolismos… Por exemplo, “Devorar” abre com cordeiros acuados e um deles sendo sacrificado para virar jantar – paralelo com a protagonista? Se for, é um simbolismo é bem mão-pesada. Não é um filme sutil, e nem precisava ser, mas às vezes o roteiro e a encenação pecam por apostar no óbvio.
O que dá força mesmo ao filme é a ótima atuação de Bennet, uma atriz que vem construindo uma carreira eclética, aparecendo em vários filmes de diferentes gêneros, mas sem nunca se destacar muito. Talvez o fato de ser um pouco parecida com a Jennifer Lawrence tenha lhe dado o empurrão inicial, mas com Devorar ela “sobe de nível”, definitivamente. A atriz não enfatiza ou exagera a perturbação psicológica da personagem – pelo contrário, Hunter nega a gravidade do que acontece com ela com naturalidade que é amplificada pela atuação – e junto com o roteiro, deixa para cada espectador a tarefa de tentar compreender essa mulher e sua luta. O trabalho da atriz é sutil, um desempenho realmente admirável. O show é de Bennet, mas Stowell e o sempre competente Denis O’Hare, numa participação perto do final, também se mostram muito bem sob a condução do diretor.
No fim das contas, é um filme que engana… O ângulo bizarro da alotriofagia atrai o público, mas quem assiste a Devorar, na verdade, vê menos um suspense ou terror, e mais o estudo sensível de uma mulher para se libertar da sua prisão transparente, e dos seus papeis de esposa idealizada e mãe para um filho que ela nem quer. Talvez seja essa dupla percepção que determinou a escolha desse título nacional – isso, e o desejo sensacionalista de chamar atenção para o filme, claro. Não é um filme para todo mundo, mas é, na maior parte do tempo, sensível e bem conduzido – até a sua conclusão, que também não deve ser do agrado de todos – pelo belo trabalho em frente às câmeras de uma atriz a quem vale a pena prestar mais atenção daqui para frente.
Ela claramente tem problemas psicológicos. Uma obra sutil em que cada plano te deixa imersivo com o que vê.