Consagrada por seu papel como Céline na trilogia ‘Antes do Amanhecer’, Julie Delpy acumula sucessos na atuação desde a década de 1990, possuindo também uma carreira sólida como roteirista e diretora. Tal combinação rendeu o ótimo drama ‘My Zoe’, protagonizado, escrito e dirigido por ela mesma. O longa, apesar de se aprofundar em temas densos como luto e perda, apresenta ritmo dinâmico e até mesmo um flerte com a ficção científica muito bem aproveitado por sua narrativa, tornando uma história interessante de se acompanhar.  

Com uma trama aparentemente simples, “My Zoe” possui um ótimo roteiro, sendo capaz de surpreender mesmo em cenas mais singelas. O foco da história é Isabelle (Julie Delpy), uma geneticista recém-separada de James (Richard Armitage), um ex-marido abusivo. Ambos dividem a guarda da pequena Zoe (Sophia Ally), tentando entrar em harmonia pelo bem da filha, entretanto, toda situação é agravada com um acidente que pode fazer os pais perderem Zoe para sempre.

Voltado para a realidade

Desde o princípio, é possível perceber que o longa consegue se aproximar bastante da realidade. Tanto no cotidiano de Isabelle com Zoe quanto nos diálogos conflituosos com James, fica evidente a preocupação de manter uma trama com os “pés no chão”. Além de ser o nome do filme, “My Zoe” também remete à forma íntima como Isabelle trata a filha. É exatamente através desses pequenos detalhes que o filme constrói sua grandiosidade narrativa.

Muito da verossimilhança também provém da construção de personagens, principalmente, o ex-casal Isabelle e James. A geneticista possui todas as nuances de uma mulher que passou por um relacionamento abusivo e traumático. Aos poucos, durante as diversas brigas e discussões, algumas revelações são feitas, apresentando todas suas motivações para o comportamento contido e incômodo perto do ex-marido.

Já James, mesmo sendo o grande antagonista, possui uma construção sólida, tornando muito difícil não o comparar com alguém conhecido do dia a dia. James é um homem que, apesar de mostrar um discurso progressista sobre o relacionamento e tentar se fazer presente na vida de Zoe, também é extremamente manipulador, agressivo e, obviamente, não sabe interpretar as atitudes e argumentos de Isabelle, a não ser que isso favoreça seu próprio discurso.

Para dar vida a este drama familiar, Richard Armitage (isso mesmo, o Thorin Escudo de Carvalho de Hobbit) e nossa querida Julie Delpy dão o melhor de si nas performances. Embora James possua tantos defeitos é palpável o seu sofrimento sobre a perda da filha, assim como Isabelle passa a assumir uma postura mais racional, porém, carregada de dor e traumas em seus trejeitos. Desta forma, mesmo o ponto central da trama sendo Zoe, James e Isabelle orbitam ao seu redor como os grandes construtores da narrativa. Antes da ficção científica ser abordada mais amplamente, Delpy prepara um bom drama familiar e, consequentemente, ser utilizado também na segunda parte do longa.

Mas e a ficção científica?

Mesmo na primeira parte mais realista, Delpy insere gradualmente alguns elementos mais futuristas, preparando o público para a segunda parte da história em que a ficção científica é bem mais presente. Nela, temos o envolvimento de novos personagens e de Isabelle em uma nova fase na tentativa de continuar, de alguma forma, com sua filha. Sem dar grandes spoilers, acredito que esse momento continue a deixar a trama interessante justamente por focar nos conflitos pessoais de seus personagens, sem apelar aprofundar em questões científicas mirabolantes – ainda assim, um tanto superficiais.

Toda essa superficialidade sobre detalhes científicos e genéticos é encaminhada para seu desfecho, o qual não empolga tanto quanto o restante da narrativa. Afinal, o enredo é embasado pelo acompanhamento de seus personagens e, no final, temos várias histórias que ficam em aberto – o trio principal segue com seu desfecho, porém, todo o resto é facilmente esquecido.

No mais, ‘My Zoe’ é um filme delicado e bem feito, o qual consegue prender a atenção do público até o final mesmo com sua simplicidade aparente. O drama familiar e todas temáticas abordadas com Delpy além de enriquecerem a narrativa também são elementos-chave para desenvolver uma trama alarmante. Definitivamente, Delpy tornou-se o tipo de artista em que sua obra é maior que si mesma, mas digo isto de forma positiva, pois além de atriz e roteirista, agora ela também deve ser considerada um grande nome como diretora.  

‘A Paixão Segundo G.H’: respeito excessivo a Clarice empalidece filme

Mesmo com a carreira consolidada na televisão – dirigiu séries e novelas - admiro a coragem de Luiz Fernando Carvalho em querer se desafiar como diretor de cinema ao adaptar obras literárias que são consideradas intransponíveis ou impossíveis de serem realizadas para...

‘La Chimera’: a Itália como lugar de impossibilidade e contradição

Alice Rohrwacher tem um cinema muito pontual. A diretora, oriunda do interior da Toscana, costuma nos transportar para esta Itália que parece carregar consigo: bucólica, rural, encantadora e mágica. Fez isso em “As Maravilhas”, “Feliz como Lázaro” e até mesmo nos...

‘Late Night With the Devil’: preso nas engrenagens do found footage

A mais recente adição ao filão do found footage é este "Late Night With the Devil". Claramente inspirado pelo clássico britânico do gênero, "Ghostwatch", o filme dos irmãos Cameron e Colin Cairnes, dupla australiana trabalhando no horror independente desde a última...

‘Rebel Moon – Parte 2’: desastre com assinatura de Zack Snyder

A pior coisa que pode acontecer com qualquer artista – e isso inclui diretores de cinema – é acreditar no próprio hype que criam ao seu redor – isso, claro, na minha opinião. Com o perdão da expressão, quando o artista começa a gostar do cheiro dos próprios peidos, aí...

‘Meu nome era Eileen’: atrizes brilham em filme que não decola

Enquanto assistia “Meu nome era Eileen”, tentava fazer várias conexões sobre o que o filme de William Oldroyd (“Lady Macbeth”) se tratava. Entre enigmas, suspense, desejo e obsessão, a verdade é que o grande trunfo da trama se concentra na dupla formada por Thomasin...

‘Love Lies Bleeding’: estilo A24 sacrifica boas premissas

Algo cheira mal em “Love Lies Bleeding” e é difícil articular o quê. Não é o cheiro das privadas entupidas que Lou (Kristen Stewart) precisa consertar, nem da atmosfera maciça de suor acre que toma conta da academia que gerencia. É, antes, o cheiro de um estúdio (e...

‘Ghostbusters: Apocalipse de Gelo’: apelo a nostalgia produz aventura burocrática

O primeiro “Os Caça-Fantasmas” é até hoje visto como uma referência na cultura pop. Na minha concepção a reputação de fenômeno cultural que marcou gerações (a qual incluo a minha) se dá mais pelos personagens carismáticos compostos por um dos melhores trio de comédia...

‘Guerra Civil’: um filme sem saber o que dizer  

Todos nós gostamos do Wagner Moura (e seu novo bigode); todos nós gostamos de Kirsten Dunst; e todos nós adoraríamos testemunhar a derrocada dos EUA. Por que então “Guerra Civil” é um saco?  A culpa, claro, é do diretor. Agora, é importante esclarecer que Alex Garland...

‘Matador de Aluguel’: Jake Gyllenhaal salva filme do nocaute técnico

Para uma parte da cinefilia, os remakes são considerados o suprassumo do que existe de pior no mundo cinematográfico. Pessoalmente não sou contra e até compreendo que servem para os estúdios reduzirem os riscos financeiros. Por outro lado, eles deixam o capital...

‘Origin’: narrativa forte em contraste com conceitos acadêmicos

“Origin” toca em dois pontos que me tangenciam: pesquisa acadêmica e a questão de raça. Ava Duvernay, que assina direção e o roteiro, é uma cineasta ambiciosa, rigorosa e que não deixa de ser didática em seus projetos. Entendo que ela toma esse caminho porque discutir...