Pense comigo: quantas cinebiografias você já assistiu que começam com uma entrevista ou algum outro momento em que o ou a protagonista, no “presente”, começa a lembrar ou contar do seu passado? É uma fórmula infalível, pelo menos, quando falamos de filmes que pretendem ter certo sucesso na temporada de premiações. Não é de surpreender que o novo trabalho de Lee Daniels, “Os EUA contra Billie Holiday”, parta deste mesmo ponto para levar o espectador a uma viagem que começa no fim da década de 1930, quando Billie grava “Strange Fruit“, música que denuncia o linchamento da população negra no Sul dos Estados Unidos.
É a partir daí que seguimos com a cantora em uma série de relacionamentos abusivos, memórias traumatizantes da infância, vício em heroína e obra-prima musical seguida de obra-prima musical. Em meio a tudo isso, uma perseguição acachapante do Governo dos Estados Unidos e seu racismo disfarçado de política antinarcóticos.
E é justamente nesta perseguição que temos a força e o calcanhar de Aquiles do filme de Daniels. Por um lado, a cinebiografia apresenta Billie como uma artista que desafiava organizações como a Ku Klux Klan ao colocar “Strange Fruit” no repertório e falar sobre os “dois pesos, duas medidas” da mídia em relação a ela e artistas brancas como Doris Day.
Em compensação, a forma como o drama se concentra na percepção do Departamento de Narcóticos sobre a cantora e o que ela representa para a cultura norte-americana por vezes resulta em um filme que poderia ser rebatizado de “conversas de homens sobre Billie Holiday”, ou “conversas de gente branca sobre Billie Holiday”. Quer um exemplo? O subplot mal aproveitadíssimo da bissexualidade da cantora, reduzido a uma conversa quase cartunesca entre o agente federal Harry Aslinger (Garrett Hedlund) e a atriz Tallulah Bankhead (Natasha Lyonne).
A ENTREGA IMPRESSIONANTE DE ANDRA DAY
Mas se “Os EUA contra Billie Holiday” peca ao não dar a dimensão da lenda de Billie – algo que a cinebiografia mais tradicional de 1972 protagonizada por Diana Ross consegue fazer com mais competência -, o trabalho de Andra Day deve ser exaltado. Cantora que teve seu nome artístico inspirado na alcunha “Lady Day”, de Billie, ela tem uma entrega impressionante, que vai além da imitação tão exaltada em filmes sobre artistas conhecidos. Ajuda o fato de que Day realmente canta todas as músicas em cena, e também sua intimidade já existente com o repertório de Holiday.
Nas cenas fora do palco, ela também excele: destaco um dos poucos momentos inspirados da direção de Daniels, o plano-sequência que leva Billie a encarar todos os seus demônios. A já citada cena da entrevista que “emoldura” o longa também tem vale ser destacada. Ainda que haja o exagero da participação de Leslie Jordan como um colunista nos moldes de Luella Parsons ou Hedda Hopper, a dor e a impaciência de uma Billie que está perdendo a guerra contra o governo norte-americano são exprimidas com pungência por Andra Day.
Infelizmente, ela é mais um caso de atriz infinitamente melhor que o filme no qual está. A aposta de um romance como grande conflito do longa e o “olhar masculino” em cenas de violência e de sexo são muletas que poderiam ser evitadas. A sorte é que, como a Billie Holiday de Andra Day prevê em determinado momento de “Os EUA contra Billie Holiday”, a arte dela permanecerá.
Independente de qualquer produção que não esteja à altura de sua lenda.