Poderia classificar “Depois a louca sou eu” como um retrato da geração contemporânea: volúvel, angustiada e buscando formas de conviver com seus próprios traumas. A produção dirigida por Julia Rezende (“Coisa Mais Linda“, “Ponte Aérea”), inspirada no livro homônimo de Tati Bernardi, utiliza pitadas de humor para discutir questões relacionadas a saúde mental e como gerencia-las no atual contexto.

Disponível no prime vídeo, a trama acompanha Dani (Debora Falabella), uma publicitária que desde a infância apresenta crises de pânico e ansiedade. A forma como Rezende conta a história evidencia que este quadro não foi escolha da personagem, mas sim um somatório de circunstâncias que a deixaram assim. Dessa maneira, a abordagem é eficaz e sensível ao explorar o cotidiano da protagonista, principalmente ao inserir elementos gráficos que tornam sua linguagem atual e descolada para atrair a geração tiktok.

Relações familiares e nossas fragilidades

O roteiro escrito por Gustavo Lipsztein (“Polícia Federal: A Lei é para Todos”) cria um diálogo muito pertinente com o momento em que nos encontramos e a fragilidade de nossas mentes e relações. Enquanto o filme inicia nos fazendo rir das situações vividas por Dani e sua criação neurótica, o caminho para os momentos mais tensos vai sendo pavimentado. Prova disso é que mesmo sendo cômico e absurdo a forma como seus familiares enxergam a vida, suas atitudes despertam incômodo e beiram realmente a insanidade; algo complicado de experimentar na primeira infância, mas, como diria Freud, determinante para moldar a existência.

Essa escolha narrativa aponta o verdadeiro embrião dessa comedia romântica: a relação mãe e filha. As paranoias e inseguranças da infância fortalecem o não rompimento do cordão umbilical. Por isso, a preocupação em torno da morte da mãe, o retorno frequente para o ninho quando as coisas desandam e a aprovação desta para a automedicação são fatores que norteiam a trajetória de Dani e servem como capítulos verossímeis da história. Afinal, estes são os momentos de maior solidez, sensibilidade e simbologia na comedia de Julia Rezende. E, de certa forma, nos oferece um retrato mais profundo, e que precisa ser avaliado, da geração contemporânea.

O rosto e a voz de Dani

Ter Debora Falabella interpretando a protagonista é um dos trunfos de “Depois a louca sou eu”. Ela oferece uma interpretação capaz de proporcionar sentimentos incômodos e conflitantes constantemente, levando, ao mesmo tempo, a identificação do espectador. A narrativa em off também possibilita que entendamos mais profundamente o que se passa na mente inquieta e angustiante da personagem.

Por interpreta-la em todos os momentos da juventude, as cenas de Falabella que mais chamam atenção são aquelas em que Rezende brinca com os estilos, como na crise de ansiedade pós término em que há uma coreografia sincronizada a uma breve animação. A direção eficiente em parceria com a atuação modula bem o estado da patologia emocional, sem cair em momentos artificiais ou que banalizem a doença – especialmente, ao percebermos a busca incessante da protagonista pela cura.

Leve, profunda e capaz de gerar identificação, vale a pena fazer um mergulho pela mente de Dani e compreender os aspectos que despertam as doenças emocionais/mentais. “Depois a louca sou eu” é um bom estudo de caso da nossa geração e, principalmente, um exemplar interessante da comédia nacional.

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