O medo do fracasso, as pressões contemporâneas e as estruturas sociais colocam uma parede no meio de um casal em “Nö”, nova produção alemã que teve sua estreia mundial no Festival Internacional de Cinema de Karlovy Vary deste ano. Premiado com o Globo de Cristal de Melhor Diretor no evento pelo filme, o cineasta Dietrich Brüggemann examina as crises de relacionamento por um viés teatral e metalinguístico em um longa que deve fazer sucesso no circuito de arte.

O médico Michael (Alexander Khuon) e sua namorada de longa data, a atriz Dina (Anna Brüggemann, irmã do diretor e co-roteirista), têm 30 e poucos anos, já estão juntos há um tempo e são felizes. Porém, o que fazer a seguir? Casar? Ter filhos? Ajustar suas relações familiares? As dúvidas dão vazão a todo tipo de neura, que vêm à tona na forma de delírios ou conversas para lá de francas.

ESTRUTURA BRECHTIANA


Há um formalismo e rigor estrutural em “Nö” que reforça as conexões do longa com o teatro – especialmente o brechtiano, que estimula o efeito alienante do drama. Em conjunto com o diretor de fotografia Alexander Sass e o montador Vincent Assmann, o realizador usa técnicas que normalmente ampliam a sensação de imersão – câmera estática, longas tomadas – mas que aqui geram o efeito reverso: elas criam um distanciamento entre o espectador e a obra.

Os 119 minutos de projeção são divididos em 15 cenas retratando o casal em diferentes pontos do relacionamento e abordam questões distintas. Essas cenas duram entre cinco e dez minutos e seguem sem cortes. Delas, apenas quatro contém movimentos de câmera. No meio dessa estrutura, o casal se vê em situações que alternam entre tragédia e comédia – e muitas vezes as tornam indistinguíveis uma da outra.

O roteiro, assinado pelo cineasta e sua atriz principal, se foca na preocupação – para não dizer paranoia – bastante “millennial” de viver uma vida pré-programada, com etapas já estabelecidas. A ironia, ele argumenta, é que essa preocupação é também uma dessas etapas e não impede os protagonistas de experimentarem as mesmas picuinhas de casal que já existem há geração.

DILEMA NO FINAL FELIZ


O longa, mesmo com alguns momentos que poderiam ter sido enxutos, está cheio de momentos inspirados que dão ampla visualização aos medos de Dina e Michael. A sexta cena, em particular, que começa com uma discussão após o nascimento do bebê do casal, se transforma em uma verdadeira guerra dentro do hospital (com soldados e tudo), escancarando o pavor de uma mãe de primeira viagem temendo pela vida de sua criança.

À sua maneira, “Nö” é uma anticomédia romântica, no sentido em que quer explicar não como a atração entre duas pessoas acontece, mas como ela perdura e se transforma no tempo. Suas personagens correm atrás do seu final feliz sem perceber que ele está escapando entre seus dedos. Com sua câmera implacável, Dietrich Brüggemann busca as coisas que atraem e repelem em um casal – e frequentemente descobre que elas são as mesmas.

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