Falar em um curta metragem de pouco mais de três minutos sobre solidão feminina e a sobrecarga que mulheres historicamente são submetidas pode parecer arriscado, no sentido de ser um tema que se direciona para múltiplos caminhos. Essa ousadia foi encarada pela diretora e roteirista Isadora Lis, em seu “Bebé”, filme integrante da programação do Festival de Cinema da Amazônia – Olhar do Norte. 

Tentei durante muito tempo pensar em estabelecer conexões com o filme a partir de um ponto de vista mais formal, afinal de contas, esse é meu primeiro trabalho de cobertura crítica em um festival de cinema e o desejo em “acertar” na escrita me perseguiu em muitos momentos. Daí, algumas tentativas e preocupações minhas em elaborar um ponto de vista mais técnico/descritivo sobre a obra, deixando em segundo plano a minha subjetividade. Que besteira! Farei o oposto. Primeiro porque minha formação é em teatro, tudo o que escrevi sempre foi com o teatro e foi o teatro que direcionou um olhar sensível em relação ao meu trabalho como crítico. Portanto, minha escrita pode ser com o filme e não sobre ele. 

Isadora, ao assumir a arriscada tarefa de discutir a temática em uma obra de tempo curto, consegue gerar uma identificação entre o público feminino, por todo o peso que mulheres carregam sozinhas, mas, também consigo perceber um sentimento que envergonha parte dos homens. Eu, como homem, em um certo grau, me vi naquele garoto (César Niño) interpretado por Hairon Luis Sánchez. E acredito sinceramente que muitos homens que assistiram, ou que ainda vão assistir ao filme, se viram representados no personagem. Mesmo que não admitam concordar agora, concordarão no sigilo, para si mesmos. 

O curta me fez passear pelas minhas memórias e lembrar das vezes que presenciei as mesmas angústias da protagonista em minhas tias, minha mãe e também minha avó. A mesma sobrecarga de Zoé (Sofia Sahakian) quando disse “sinto que carrego o peso do mundo sozinha”. O filme não é só sobre uma relação tóxica de um casal formado por um homem e uma mulher. Sem muito esforço de leitura, “Bebé” é sobre um comportamento infantilizado e naturalizado que nós, homens, temos em relação às nossas mães, tias, esposas, irmãs e como ainda perpetuamos isso.   

A escolha do roteiro em colocar uma criança para interpretar esse homem passivo, encostado e que não sabe se virar sozinho é um recurso que fez toda a diferença no atravessamento do filme. Porque é exatamente assim que a protagonista se sente. Cuidando de um bebê, um menino-homem que não amadureceu e que consegue atrapalhar uma valiosa e rara saída com as amigas. 

DESTAQUE ARGENTINO

É preciso salientar que o filme alcança esses atravessamentos não só ao bom desenvolvimento do roteiro e condução da direção, mas à atuação precisa de Sofia Sahakian, estreante no Festival de Cinema da Amazônia – Olhar do Norte. Sophia carrega em seus gestos e movimentos sutis as angústias e dramas de sua personagem. Destaco a força de seu olhar, que consegue passar com profundidade o vazio, exaustão e solidão, vividos por Zoé. Fiquei sinceramente tocado com sua atuação, que, sem sombra de dúvidas, é parte fundamental do impacto que o filme causa em quem assiste. 

De forma cirúrgica, “Bebé” aborda muito bem o adoecimento mental que a cultura do patriarcado exerce sobre corpos femininos. Que essas narrativas possam se fazer cada vez mais presentes nos festivais de cinema pelo país, sobretudo no cinema feito na região norte e aqui em Manaus, pois, a experiência e presença feminina nos sets de filmagem, e em todas as esferas de feitura da linguagem do cinema ajudam a adubar, com outras narrativas, um ambiente ainda predominantemente masculino.