A solidão que a gente carrega e que nos carrega também. “Deserto Particular” é um filme sobre espaços e tempo. Logo na abertura, Daniel (Antônio Saboia) corre de noite em meio a uma rua vazia, enquanto ouvimos uma narração do protagonista direcionada a alguém que ele ama. Não há mais ninguém na rua pelo que ele fala, mas a câmera não nos permite perceber totalmente o local. E isso se repete sempre na obra, independente da situação, o protagonista está sozinho e sabe disso.

Daniel é um policial que mora em Curitiba e recentemente cometeu um erro no trabalho que causou uma suspensão. Ele cuida do pai, um homem idoso e doente, contando com a ajuda da irmã mais nova. “Deserto Particular” apresenta essa estrutura durante seu primeiro ato, que acaba funcionando quase como um prólogo.

A cidade é fria, Daniel parece não ter conexão com nada e enfrenta tanto uma crise no trabalho quanto na sua relação amorosa com Sara, uma misteriosa mulher com quem ele troca mensagens. O filme apresenta pouca trilha sonora nesse primeiro momento e coloca o policial sempre nesse lugar de desconforto.

Chama a atenção a construção da figura paterna, pois, o pai idoso, com dificuldade de locomoção e de memória, é a única coisa que parece conectar Daniel ao mundo, como se a condição física do progenitor representasse a condição emocional com a qual o protagonista lida com o seu entorno.

DO DRAMA AO ROMANCE

Nessa primeira parte, temos um homem que carrega sua solidão. Então, “Deserto Particular” finalmente apresenta seu nome e temos uma virada. A partir daqui, a espetacular trilha sonora composta por Felipe Ayres começa a acompanhar o filme. É uma trilha dominada por violões e retratam uma melancolia raivosa pela qual o protagonista passa, retratando esse momento de mudança. A solidão passa a carregar Daniel.

O personagem de Antônio Saboia parte em busca da mulher que ama, viajando de Curitiba para o interior da Bahia. A paisagem desértica começa a dominar a tela e o diretor Aly Muritiba (“Ferrugem”) consegue a proeza de fazer Daniel mais “vivo” em meio ao nada. O personagem não passa por uma reviravolta em sua personalidade, mas a partir do momento que o exterior passa a combinar com seu interior, ele domina mais a tela e a bela forma que Muritiba encontra para ressaltar essa mudança é passagem de protagonismo para Sara, transformando o drama em romance.

Spoilers a partir daqui

Ao colocar Sara (Pedro Fasanaro) como uma personagem tão contrastante ao policial, a obra consegue o feito de transformar sua relação em um improvável e sensível romance, pois, apesar de suas diferenças, temos pessoas pouco adaptadas ao seu ambiente em busca de algum sentido para si.

Sara que também é Robson, um jovem que entre o exaustivo trabalho e as pressões da família e da igreja tenta superar sua solidão. Pedro Fasano está incrível em sua atuação, entregando uma personagem capaz de dizer muito mesmo sem uma única palavra, cooptando a atenção de quem assiste do mesmo modo que atrai a paixão de Daniel, nas lacunas.

Se o policial parte em busca de sua amada ao não receber respostas dela, é justamente no mistério que Sara nos conquista. E assim como Daniel, quando ela deixa que a melancolia a carregue é quando consegue sua libertação. A música tocada no final (“Total Eclipse of The Heart”, de Bonnie Tyler), a única durante o filme, traz em seu refrão que “O pra sempre começará essa noite” e soa como o grito de que a solidão finalmente passa a ser uma companheira para aqueles personagens.

LEIA CRÍTICAS DE OUTROS FILMES BRASILEIROS:

“7 Prisioneiros”: a insidiosa escravidão do século XXI

“Marighella”: a mítica do protagonista sobreposta ao homem

“A Menina que Matou os Pais”: roteiros fracos desperdiçam material rico de possibilidades

“Doutor Gama”: necessário, histórico e para diversos públicos

“Encarcerados”: contradições do sistema prisional postas em choque