Em um banheiro público mal iluminado, ela pinta o rosto e os lábios, cuidadosamente deixando uma mecha de cabelo para fora do seu hijab de oncinha. Ela se dirige à calçada. Um carro se aproxima. Ela entra. 

No banheiro de um desconhecido, a mulher cospe o sêmen em sua boca e limpa a vagina com um pedaço de papel higiênico. Seu corpo é coberto de hematomas. Ela volta à rua. 

O carro de um cliente. Sua cabeça é pressionada com força contra o pau do homem. Ela recebe menos do que o combinado. O cliente argumenta que não conseguiu gozar, que ela não terminou o serviço. 

Um terceiro cliente, desta vez em uma moto. Ele a leva até sua casa. Ele a estrangula. A mulher morre. 

Depois de dois encontros violentos, essa é a conclusão natural da noite: a morte da prostituta. Na verdade, ela vinha morrendo de pouquinho em pouquinho a cada violência sofrida. 

A RAIVA COMO OBJETO CENTRAL

Esses são os primeiros minutos do longa dinamarquês-iraniano “Holy Spider”, dirigido e roteirizado por Ali Abbasi. Ficamos com a impressão de que o filme apostará em uma estrutura cíclica: veríamos, então, noite após noite, prostitutas sendo assassinadas, sempre o mesmo modus operandi. É que o filme começa tão sujo e opressivo que parecemos não ter para onde ir. 

Não é tanto o caso. Baseado numa história real na cidade de Mashhad, Irã, o filme nos apresenta a Saeed. Ele trabalha como construtor e é homem religioso, grave, mas gentil com os filhos. Saeed também é um serial killer de prostitutas, em uma cruzada para limpar a cidade da imoralidade – suas palavras. 

Ele é interpretado por Mehdi Bajessan de forma comedida – dois olhos ferinos atrás de uma fachada de pedra, a barba grisalha formando padrões acinzentados como a penugem de um animal – enfim, é um pai de família. 

Mas Saeed não é, tecnicamente, o protagonista de “Holy Spider”. Esse papel cabe à repórter intrépida interpretada por Zar Amir Ebrahimi (prêmio de melhor atriz em Cannes este ano). E mesmo que a atriz faça um bom trabalho, o foco do filme parece recair mesmo sobre o assassino de Bajessan. 

É que “Holy Spider” parece escolhê-lo para um papel bem específico: a face de um Irã odioso, cego, criminoso. Ao longo do filme, veremos, cada assassinato de prostituta será celebrado pela cidade como uma vitória moral. Este é um filme feito com raiva. 

ARMADILHAS DA RAIVA

Mas isso também pode ser um tiro no pé. Ao dedicar tanto do seu tempo às mesmas questões, de novo e de novo, “Holy Spider” perde o fôlego: fica difícil sustentar a mesma nota por duas horas. 

É algo que a estrutura em duas partes que o longa adota exacerba ainda mais. A primeira metade, uma jornada pelas vielas da mente de um serial killer, a cidade à noite como uma grande teia de aranha incandescente, de onde nada escapa. A segunda fica marcada por um drama de tribunal que logo se torna dos mais enfadonhos pela insistência com que martela seus temas. 

Sim, algumas imagens de “Holy Spider” são fortes: não sei se esquecerei o rosto daquelas prostitutas – maquiagens berrantes, como gárgulas de lábios rosa-choque e animal print – tão cedo. Mas a raiva que permeia o longa podia ter sido um pouquinho melhor destilada.