Em uma sociedade em que há divisão de classes entre burguesia e proletários, pobres e ricos, desigualdades sociais, intelectuais, culturais e patrimoniais, nunca haverá de fato um território democrático. O histórico da sociedade nos diz muito sobre ela mesma: é um completo fracasso. A busca incessante pelos domínios do poder se desenvolvem e se atualizam com ao passar dos tempos, dos séculos. Para além do conflito político-social, há aquele que revela o pior do homem: o conflito moral. Em uma sociedade burguesa em que o padrão de uma vida próspera e de sucesso está intrinsecamente ligado ao lucro, condição social e status, o sujeito sucumbe às diversas ferramentas que o leva (ou não) a se corromper perante esse tornado de situações. O sujeito moral, portanto, está entregue nesta rede de intrigas.

Balzac era um profundo conhecedor da condição humana; não à toa é conhecido como o fundador do realismo, um gênero da literatura moderna. Já o diretor francês Xavier Giannolli (“Marguerite”) compreende Balzac e nos entrega uma excelente trama baseada no livro homônimo. “Ilusões Perdidas” é um tratado sobre apogeu, queda, questões morais, sociais, políticas, culturais. E, nas atuais circunstancias um prelúdio das fake news e a imprensa marrom.

A HISTÓRIA

Lucien Chardon (Benjamin Voisin, ótimo!) é um jovem, ingênuo e obstinado poeta. Amante da Baronesa Louise de Bargeton (Cécile de France), eles partem rumo a Paris. Obviamente, nada acontece como o esperado e os dois se separam. Chardon conhece o excêntrico jornalista Étienne Lousteau (Vincent Lacoste) que lhe apresenta o mundo da imprensa e o faz jornalista. Neste processo, surge a bela e volúvel atriz de teatro Coralie (Salomé Dewaels), sua grande paixão. E também alguns desafetos como o escritor Nathan (Xavier Dolan).

Entre monarquistas, liberais, poder, luxúria, trapaças e tropeços, Lucien se descobre como homem na selva de pedra de uma Paris de 1820. A paixão, a poesia ficam de lado, mas nunca em segundo plano, nesta jornada de ascensão por meios tortos e duvidosos. Ele dança conforme a música e usa o talento com as palavras para vender, nem que para isso as palavras sejam falsas e impiedosas.

VÍCIOS DO DESLUMBRE

Ainda que ele tenha noção dos riscos não há como não se envaidecer e se deixar levar pelos vícios. Essa também é uma questão de Balzac orquestrada muito bem por Giannolli, o vício. O vício pela fama, pelo poder, pelo despudor. Ela mexe com o ego, cega e se espalha pelo ambiente, nos tornamos reféns.

Neste contexto obscuro, há também a questão do papel da imprensa em vender notícias, narrar os fatos e transformá-los em um verdadeiro circo. Nada diferente ainda nos dias de hoje, especialmente com as fake news cada vez mais estruturadas em uma sociedade, olha só, viciada, ególatra e intemperante. Ou seja, muda o século, mas os comportamentos predatórios e viciantes continuam presentes.

“Ilusões Perdidas” é um tratado visionário, atemporal e cruel de como o sujeito pode se desviar do seu caminho pelo deslumbre, impulsionado pelos podres poderes externos e que, ao lutar contra ele, não há vitória, pois o elo dominante é nocivo e detém todos os mecanismos em suas mãos para se manter no topo da pirâmide. Arte e jornalismo não se interligam quando uma parte já está corrompida. E as palavras, como Lucien diz em certa cena – “eu acredito na literatura!” – aqui, não são nada mais do que meia dúzia de letras para lucrar e difamar.

A grandiosa produção foi a grande vencedora do César 2022, incluindo melhor filme, ator revelação (Voisin), ator coadjuvante (Lacoste) e figurino. Para o autor que vos escreve, merecia atriz coadjuvante (Balibar) e a divisão dos atores Lacoste e Gérard Depardieu como secundários.

Nota do autor: o jovem ator francês Benjamin Voisin é um achado. Já tinha surpreendido em Verão de 85 e mais uma vez preencheu a tela. Fiquemos de olho!

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