Em 1961, Leonel Brizola, então governador do Rio Grande do Sul, foi o principal responsável por liderar um levante popular em defesa da democracia brasileira. Chamado de Campanha da Legalidade, o movimento buscava garantir a posse do vice-presidente João Goulart após a renúncia de Jânio Quadros, a fim de cumprir a Constituição e evitar um golpe militar (o que viria a se concretizar três anos depois).
Tal episódio marcante da nossa política já seria suficiente para render um filme e tanto. Mas, em “Legalidade”, o diretor gaúcho Zeca Brito parece não ter confiado o suficiente no potencial cinematográfico dessa história e a tornou plano de fundo para uma trama ficcional repleta de clichês explorados exaustivamente pelo cinema ao longo das décadas, com o objetivo de tornar a obra mais comercial e atrair uma maior fatia de público.
Exibido no Festival de Gramado numa sessão especial em homenagem ao ator Leonardo Machado (morto no ano passado, aos 42 anos, em decorrência de um câncer), “Legalidade” foi bastante criticado pelo seu tom folhetinesco. O roteiro, assinado pelo próprio diretor em parceria com Leo Garcia, usa e abusa de artifícios de telenovela antiga, resultando em um verdadeiro melodrama com direito a triângulo amoroso e trilha sonora com boleros repetidos à exaustão.
ELENCO ENTRE ALTOS E BAIXOS
Cleo (ex-Pires) não convence como Cecília Ruiz, a misteriosa jornalista brasileira radicada nos Estados Unidos que retorna ao país de origem em meio ao turbilhão e se envolve com os irmãos Luiz Carlos e Tonho, vividos por Fernando Alves Pinto e José Henrique Ligabue. Estes, inclusive, são os grandes destaques do elenco, garantindo bons momentos enquanto Cleo exagera nas caras e bocas durante toda a projeção e não consegue transmitir a ambiguidade necessária à sua complexa protagonista.
Por outro lado, Leonardo Machado defende com unhas e dentes o seu Leonel Brizola, imprimindo na tela toda a tensão que o político enfrentou durante os 14 dias em promoveu a Campanha da Legalidade. Poderia e merecia ter brilhado muito mais caso tivesse sido o personagem central do filme, que ainda conta com uma pequena participação do grande Paulo Cesar Pereio.
Outro enorme desperdício é Letícia Sabatella, que surge deslocada como a filha de Cecília Ruiz em uma trama paralela desnecessária ambientada em 2004, pouco antes da morte de Brizola (aqui interpretado por Sapiran Brito, pai do diretor). Blanca, a personagem de Letícia, pesquisa documentos da ditadura militar em busca de informações sobre o passado de sua mãe e, consequentemente, sua origem.
RELEVÂNCIA EM TEMPOS DE AMEAÇA DEMOCRÁTICA
Dentre os pontos positivos em “Legalidade”, merece destaque a belíssima fotografia de Bruno Polidoro trabalhada em tons escuros, uma escolha bastante adequada para retratar aquele período sombrio.
A direção de arte, assinada por Adriana Nascimento Borba, reproduz com fidelidade a época retratada, ressaltando a grandeza de locações como o Palácio Piratini e o Paço Municipal de Porto Alegre. Apenas derrapa em pequenos detalhes como, por exemplo, jornais guardados por mais de 40 anos que aparecem brancos e novos como se tivessem acabado de sair da banca. Inclusive, tais jornais históricos são rabiscados por Blanca em plena hemeroteca, algo ilógico e bizarro, resultando em mais uma falha por parte da direção.
Excessivamente didático na parte histórica, o filme conta com raras imagens de arquivo no decorrer de sua narrativa, que ajudam a solucionar questões de orçamento, mas também ressaltam o compromisso do diretor e roteirista com a veracidade dos fatos. Tal preocupação é refletida até nos traços psicológicos dos personagens fictícios, que foram moldados a partir de figuras reais que viveram os acontecimentos da época.
Segundo o filósofo Edmund Burke, “um povo que não conhece a sua história está condenado a repeti-la”. Ao terminarmos de assistir “Legalidade”, é possível constatar que nunca estivemos tão perto daquele Brasil de 1961 como agora. E é justamente isso que faz com que o filme mereça ser visto, independentemente de suas falhas. Porque, cada vez mais, o cinema brasileiro torna-se uma vitrine para a reflexão e discussão sobre os rumos que o nosso país vai tomar em um momento em que voltamos a ter nossa democracia ameaçada.