Aqui vai uma história trágica: o estúdio que, outrora lar para verdadeiros artesãos que laboravam arduamente em suas narrativas, completamente alheios às pressões do mundo exterior, hoje se desvanece pouco a pouco, aparentemente corrompido pela influência de sua temível companhia-mãe. Ou, ao menos, é o conto que aparece refletido na aura romântica dos cada vez mais distantes dias de glória da Pixar.

Tudo bem que apontar a queda de qualidade nas produções do estúdio se tornou o equivalente a chutar cachorro morto. Você poderia dizer que esse processo teve início com “Carros 2” (2011), e que filmes como “Divertida Mente” (2015) e “Viva – A Vida é uma Festa” (2017) se tornaram como bóias em meio a um oceano de títulos esquecíveis. Você estaria certo, provavelmente: “Procurando Dory” (2016), “O Bom Dinossauro” (2015), “Universidade Monstros” (2013) – há alguma vivalma que ainda dedique uma mínima parcela de seu tempo matutando sobre esses longas?

Não deixa de ser natural, de certa forma: sobreviva por tempo o suficiente e algo do tipo acontecerá, mais cedo ou mais tarde. Nada de novo para comentarmos aqui, exceto que esta mais recente produção do estúdio, “Lightyear”, é mais uma para a coleção de títulos a serem esquecidos pelas areias do tempo.

EM BUSCA DE UM PROPÓSITO

Naturalmente, a Pixar é só mais um estúdio imerso na cultura da nostalgia e no mercado da falência criativa, remoendo produtos já existentes e vomitando sequels e prequels e legacyquels. Nada disso, repito, é novidade, e também seria tolice esperar que toda produção deste tipo fosse tão única quanto um, digamos, “The Matrix: Resurrections” (2021): ame ou odeie o filme de Lana Wachowski (e eu amo), mas essa é uma obra que, se parece chafurdar-se na nostalgia, é para dar vazão às suas próprias idiossincrasias.

E se o amor de Wachowski por seus personagens transborda em cada frame do último “Matrix”, animando e justificando a existência em um mundo de distanciamentos irônicos e isolamentos coletivos, aqui temos um filme sem alma. Melhor dizendo: “Lightyear” é um longa em busca de um propósito.

De que trata “Lightyear”? O espectador desavisado talvez pense ser o caso de uma aventura solo do Buzz, brinquedo amado por Andy em “Toy Story”. Por um tempo, achei que seria alguma espécie de “história real” por trás da criação do astronauta de plástico – o que levantaria toda uma série de dúvidas por si só. Entretanto, o filme, atento às dificuldades da plateia, faz questão de esclarecer quaisquer dúvidas logo nos primeiros segundos de projeção: “Lightyear”, o longa que assistimos, é o filme favorito de Andy – e que originou, portanto, o brinquedo que, por um breve período em 1995, ameaçou pôr fim à superioridade do xerife Woody no quarto do menino.

Dito isso, venhamos e convenhamos: quem em sã consciência se importaria com a trama de um filme que, tendo sido lançado EM um universo fictício, deu origem a um brinquedo desse mesmo universo fictício, que viria a ser importante para um tal personagem (também) fictício? Só de digitar essa explicação convoluta, sinto-me às portas da loucura; toda a empreitada parece incrivelmente absurda e despropositada.

O time criativo da Pixar se lança, assim, numa tarefa sisífica: injetar propósito a uma produção cuja raison d’etre é a boa e velha necessidade mercadológica. A solução que encontram? Apelar para fórmulas batidas, como a do herói arrogante que, ao longo da jornada, conhece a humildade e descobre o valor da amizade em lugares improváveis. Tal é o arco de Buzz – voz de Chris Evans no original e, numa decisão criativa cuja lógica me escapa completamente à razão, Marcos Mion nas cópias dubladas.

EMOÇÃO (MAL) CALCULADA

Logo no início da trama, o patrulheiro estelar toma uma decisão equivocada que acaba prendendo toda a tripulação a um planeta hostil. Buzz se lança, então, em uma missão desvairada em busca de uma solução ao problema – em uma montagem no primeiro ato bastante eficaz, reminiscente de “Interestelar” (2014). Tendo finalmente encontrado um meio de deixar o planeta, Buzz se vê diante de uma súbita invasão de robôs alienígenas. Seus únicos aliados são os soldados de um destacamento esfarrapado, com quem o astronauta estabelece uma inesperada aliança.

Dessa sumarização, o leitor provavelmente consegue sacar o filme todo, tintim por tintim. Todos os desdobramentos de sempre e as velhas alavancas sentimentais estão lá; temas como família, amizade, ambição e fracasso pipocam em busca de uma ressonância emocional com o espectador que, no entanto, nunca vem. É que, a esta altura, por que não assistir a um dos vários filmes da Pixar que trabalham esses eixos temáticos de forma superior (“Monstros S.A.”, “Procurando Nemo”, “Os Incríveis”…)? Assistir a “Lightyear” é vislumbrar (mais uma vez) um estúdio lutando contra o fantasma de si mesmo.

Não que o filme seja um completo desastre, longe disso. As cenas de ação, no geral, são bastante cativantes, com os roteiristas empilhando obstáculos sadicamente à frente dos personagens; estamos sempre nos perguntando como os heróis irão se safar de mais uma, e mais uma, e mais uma.

Mas sempre que “Lightyear” se aquieta, sempre que nos pede algum tipo de investimento emocional, seus diálogos chorosos ecoam pelas fileiras de assentos com um estampido surdo: toda a empreitada nos soa, a um só tempo, imensamente desesperada e descaradamente calculada.

Justamente, eis um filme que parece, na melhor das hipóteses, um erro de cálculo, e, na pior, um caça-níqueis cínico. O resultado é ainda mais trágico: uma casca vazia na procura esbaforida por uma alma.

Se “Lightyear” é realmente o filme favorito de Andy, então Deus abençoe sua imaginação infantil, que foi capaz de encontrar combustível para inúmeras aventuras espaciais numa obra absolutamente protocolar.

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