O reencontro com os pais após anos de afastamento é o foco principal de “Bem-Vindos de Novo”. O documentário dirigido por Marcos Yoshi parte dos vazios e das consequências dele para retratar esta tentativa de reconstrução dos elos afetivos.  

Em entrevista exclusiva ao Cine Set, o diretor fala sobre os sentimentos que o moviam para realizar o projeto, o fenômeno Dekasseguis e toda a etapa de mexer em uma relação complexa repleta de marcas profundas para cada um dos envolvidos.  

Confira abaixo: 

Cine Set – Em determinada cena do filme você diz que queria ser “um bom filho” e fazer “um bom filme”. Acha que conseguiu?  

Marcos Yoshi – Algumas pessoas que gostaram do filme disseram que sim (risos). Esta questão aparece em “Bem-Vindos de Novo” por lidar com a dimensão ética e estética relacionada ao documentário, tentando equacionar ou entender o que havia em cada uma delas.   

Compreendia que estava gravando uma obra em que lidava com situações muitos difíceis de muita culpa de um lado por ter ido para outro lugar e, depois de muito tempo, ter voltado em uma tentativa de recomeçar que não dá certo. São experiências traumáticas em que preciso compreender o meu lugar de ser um filho, de ser um bom filho – seja lá o que isso significa.   

Nisso, trabalhei o impacto do acontecimento naquele jovem de 14, 15 anos com os sentimentos que passava por ele e, por outro lado, como é a situação atual comigo, já adulto, sobre recordar aquelas sensações e vivendo este novo desdobramento na vida deles. E, no meio de tudo, há o filme. Espero ter conseguido o meu objetivo ou, pelo menos, ter suscitado no público de que isso estava em jogo.  

Cine Set – Queria que explicasse o que significa o Fenômeno Dekasseguis.  

Marcos Yoshi Dekasseguis significa literalmente ‘sair de casa para ganhar dinheiro’. Isso aconteceu no próprio Japão com as migrações internas, quando as pessoas da região norte do país, onde fazia muito frio, iam para o sul em busca de trabalho.  

Com a mudança da lei de imigração nos anos 1990, permitiu-se que descendentes de japoneses até a terceira geração, como é o meu caso, pudessem tirar um visto de residência e trabalhar por lá. Só que estes empregos eram aqueles em que os moradores do Japão não queriam executar, incluindo, operários de grandes construções.  

Até hoje, este movimento de migração continua a acontecer. Muitas pessoas foram, ficaram 5, 10 anos e voltaram. Isso envolveu uma parte significativa da comunidade nipo-brasileira; difícil achar alguma família que não tenha alguém que não tenha feito isso.  

Cine Set – O que você, de fato, sentiu neste tempo de distanciamento, já que em um trecho do filme você diz que até esquecia deles às vezes. Era abandono? Ressentimento? Revolta? 

Marcos Yoshi Era tudo junto. Obviamente, havia momentos em que sentia muita falta deles. A falta de referências faz com que eu não tenha noção do que poderia ter sido caso estivéssemos juntos. Daí, na adolescência, com os questionamentos naturais de relacionamentos e sexualidade, por exemplo, eu simplesmente desencanei de ter qualquer tipo de interlocução com os meus pais, pois, eles estavam do outro lado do mundo e não poderiam fazer nada.  

Por outro lado, há na cultura japonesa, uma ideia de que, se a pessoa está distante sem poder fazer nada, não existe motivo de você preocupá-la devido à sensação de impotência e culpa que será criada. Uma parte do relacionamento com os meus pais caminhou também neste lugar. Os dois lados sempre falavam que estava tudo bem – aliás, eles passaram várias dificuldades que somente soube tempos depois.   

Quando o meu pai sofre com um problema de saúde e eu e minhas irmãs vamos para trabalhar lá visando ajudá-los, existia este misto de fazer por amor a eles e uma espécie de “chantagem” para que retornassem ao Brasil, afinal, o dinheiro que ganhei no Japão era suficiente para pagar a minha faculdade e demais despesas, logo, se era por minha causa este sacrifício, ele não era mais necessário. Talvez não era um pensamento tão consciente, mas, admito que havia esta ambiguidade. No fim das contas, a ausência deles era marcada por uma multiplicidade de sentimentos.  

Cine Set – Como foi no processo de montagem rememorar, reviver tudo aquilo que parece ainda não superado?  

Marcos Yoshi – O grande desafio meu e do Yuri Amaral era conseguir reunir tanta coisa. Eram muitos acontecimentos, contextos com temporalidades diferentes. Por outro lado, sabíamos que não seria contado de forma linear, cronológica, mas, sem também ser algo simplesmente jogado. Neste sentido, as narrações serviam para ser uma espécie de amálgama e de poder de síntese, capaz de entregar rapidamente uma quantidade de informações para situar o espectador sobre o que está acontecendo.   

No fundo, saber como o público reagiria àquela história era algo muito difícil de prever. Durante o processo, passamos por uma oficina de montagem com a Cristina Amaral. Fizemos um corte e o exibimos para amigos para darem um feedback sobre como “Bem-Vindos de Novo” estava chegando neles. Mas, no fim, há uma aposta de que o longa atinja as pessoas de alguma forma. 

Cine Set – Quero destacar duas cenas importantes na minha visão: a cena da captura da foto do avó e, ao lado, as rachaduras da parede, isso me lembra desse fato dos nossos antepassados que aqui estiveram lutando e, ainda hoje, continuamos lutando, principalmente por conta das crises do Brasil que acompanha as famílias até hoje nesses sacrifícios diários.  

Marcos Yoshi – É possível notar esta trajetória de repetições, de fracassos, passando de gerações para gerações, quase uma sina do imigrante que teve na época dos meus avós e dos meus pais. A premissa que me levou a mobilizar a trajetória da minha família foi ter identificado um padrão de sacrifício com uma dimensão bonita e terrível simultaneamente. Admito que ainda não consegui equacionar esta ideia de sacrifício, pois, vejo a beleza de tudo que se doaram para nosso bem-estar, porém, sou crítico às consequências geradas por isso. Como isso é gerido no dia a dia dentro das famílias é muito complexo.     

Torna-se algo muito complexo como tudo isso gerido no dia a dia dentro das famílias. Nos debates sobre o filme, aliás, vez ou outra, questionam qual seria o conceito de família que carrego. Nas camadas mais populares e de classe média, a família acaba sendo o lugar de sustentação e de um lugar confuso com sentimentos ambíguos, mas, de forte acolhimento. Diante disso, é uma pena ver a extrema-direita no Brasil se apropriando dos conceitos de família, infelizmente, um tema que a esquerda, da qual faço parte, se afastou sem notar a importância dela para o cotidiano das pessoas.    

Cine Set – A próxima cena que quero destacar, você passando a mão na cabeça do seu pai. Linda e triste ao mesmo tempo. O que realmente sentiu e queria naquele momento? 

Marcos Yoshi – A cabeça do meu pai simbolizava a nossa relação, principalmente, depois da cirurgia dele. Como sequela deste procedimento, ele ficou com metade da face paralisada, o que, consequentemente, trouxe situações chatas em atividades comuns do dia a dia. Ver seu pai naquela situação gera muita angústia e aflição. Tudo isso estava ligado a este rosto e cabeça sensível.  

A cena em si concebi por intuição. Estava precisando fazer umas filmagens por conta de um workshop de desenvolvimento de projeto, sendo uma das tarefas gravar algo e mostrar para a turma. Daí, veio a ideia de pedir para tocar na cabeça dele. Por um lado, sabia que seria esquisito, mas, também havia a questão do tabu. Quando gravei, me emocionei mesmo. Foi foda. É uma experiência que você se propõe a fazer e a forma como se desenrolou foi quase um prêmio para mim.  

Cine Set – Recomeços são cansativos, falo por experiência própria, estamos sempre recomeçando e recomeçando não há saúde mental que dê conta. Vocês nesse tempo todo pensaram em terapia e trabalhar essas fissuras causadas pela distância, a volta, o recomeço e o retorno?  

Marcos Yoshi A dimensão terapêutica é constituinte do projeto. Sei que há uma interpretação muito crítica em relação a este tipo de filme com as pessoas apontando como um filme-terapia de forma a desprestigiar. Não chegaram a falar isso para mim, mas, devem ter pensado (risos). Espero apenas que não fique restrito a isso.  

Cine Set – O que você vislumbra com esse filme? E qual será o próximo passo de Marcos Yoshi?  

Marcos Yoshi – Tenho algumas ideias ambiciosas que fico protelando, talvez, por medo de começar (risos). Atualmente, estou fechando meu doutorado, mas, desenvolvendo em paralelo um projeto de desdobramento do “Bem-Vindos de Novo” sobre o meu tio.   

Ele foi a primeira pessoa da família a ir para o Japão em 1990 e precisa retornar por causa de um problema de saúde mental, o qual foi diagnosticado posteriormente como esquizofrenia. Desde então até a morte dele no ano passado, meu tio não conseguiu mais ter uma vida normal.  

Vejo uma trajetória que mobiliza desde a migração passando pelo mercado de trabalho relacionado com saúde mental e performances da masculinidade. Diante disso, estou vendo como posso desenvolver esta história, se é possível um documentário mesmo. É um período instigante e angustiante ao mesmo tempo.