Um filme de caubói. Mas ele é um homem negro, vestindo um moletom laranja e boné. Cria seus cavalos para trabalhar em filmes. Certo dia, do nada, uma ventania forte arremessa objetos do céu, uma tragédia familiar ocorre. O caubói negro vende seus cavalos para o caubói de ascendência asiática, que também já fora um astro mirim famoso – até que se deparou com um evento traumático envolvendo um chimpanzé em surto. 

De volta ao rancho, o caubói, que veste roupas de tons alaranjados e parece constantemente mal-humorado, se depara com uma nave espacial. A irmã dele acha que uma boa forma de descolar um dinheiro (além de fama) é tentando registrar a aparição do Ovni e, para isso, compram equipamentos em uma loja de eletrônicos. Acabam conhecendo o nerd da TI, caixa do local que fará a instalação das câmeras no rancho. As apostas aumentam, os riscos também e quem se une a eles é um fotógrafo e documentarista renomado. O caubói ex-astro mirim resolve tentar um diálogo com os seres extraterrestres e as coisas não saem como o esperado. No rancho, é chegado o momento. 

É tudo ou nada. É “Não, Não Olhe”, Jordan Peele entregando um filme-espetáculo perfeito. 

“O mito de que apenas certas histórias servem como um grande filme já era. Eu quis escrever este filme sem me preocupar se aquilo seria possível de realizar”, apontou Peele em um dos featurettes de divulgação do filme, o terceiro após “Corra” e “Nós”.  E pensando na continuidade/unicidade da obra do cineasta diretor norte-americano, em “Não, Não Olhe”, ele se utiliza de mais uma citação bíblica, passando de Jeremias 11:11 em “Nós” para Naum 3:6. Ela é quase literal em relação aos eventos que atravessam a tela pelas 2h10 de projeção: “lançarei sobre ti imundícies, tratar-te-ei com desprezo e te porei por espetáculo”. 

Da forma micro, fantasmagórica e filosoficamente ambiciosa com que Apichatpong Weerasethakul trata dos mistérios do universo em “Memória”, passamos para as tonalidades que reverberam em gêneros super reconhecíveis do cinema – faroeste, horror espacial, filme de monstro. Aqui em formato macro, tecidas em (mais) um roteiro de Jordan Peele que merece ser estudado; traduzido em um arrojo estético e, ao mesmo tempo, tendo como pilar uma história potente e singular sobre a espetacularização da vida. 

Uma história da imaginação 

Agua Dulce na Califórnia é locação e mundo comum da trama de “Não, Não Olhe” exceto na sequência inicial: em um estúdio de cinema, Keke Palmer na pele de Emerald Haywood faz um monólogo (já memorável) sobre o legado da família Haywood e sua importância na história do cinema. Edward Muybridge, fotógrafo que produziu uma série de imagens animadas intituladas Sallie Gardner em “Movimento” (1878), com o cavalo sendo montado por um joquei negro, tataravô de nome Haywood que se tornou criador de cavalos.  

A premissa do filme – o vício no espetáculo, na fama, a necessidade de ter um momento de deslumbramento e arrebatamento sob os holofotes – penetra a fabulação proposta pelo cineasta, em um conto de advertência, mas com muita malemolência e humor. A volta de Daniel Kaluuya e sua qualidade de estrela são um fator que eleva mais o filme. Ele é OJ Haywood, o irmão mais velho de Em e que ficou encarregado de tocar o negócio da família, o rancho Haywood e seus cavalos astros do cinema. 

A crítica social, mas também racial, está em “Não, Não Olhe”. Afinal, Peele faz filmes pessoais mesmo quando se trata de uma ficção fantástica, trazendo um contraste e uma transparência correlata à realidade contemporânea. Quando ele escolhe o cartaz do filme “Um Por Deus, Outro Pelo Diabo” (1972) para estampar uma das paredes do escritório no rancho, faz uma declaração sutil, mas importante – esse seria um dos primeiros filmes com dois cowboys negros, vividos por Sidney Poitier (também diretor do filme) e Harry Belafonte. 

“Pantera Negra” sendo o marco que foi em termos de diversidade cultural com Ryan Coogler comandando uma produção bilionária abriu as comportas ademais do talento de Jordan Peele para que a Universal Pictures dispusesse de um orçamento faraônico para esse filme – que tem uma pessoa branca como coadjuvante, e olhe lá. Peele escreveu o roteiro pensando em criar um espetáculo que capturasse o interesse e a imaginação das plateias, em um momento onde se perguntava se haveria futuro para o cinema ou mesmo público, lá no começo da pandemia. 

As piadas com sitcoms (algo bem próximo na trajetória do cineasta que teve a sua própria, “Key & Peele”, finalizada em 2015), com o programa humorístico Saturday Night Live e demais tiradas com cultura pop permanecem inspiradas. A artesania, o arrojo na narrativa compõem harmoniosamente o quadro, emprestando a “Não, Não Olhe” mais do que o ar de um pesadelo cinematográfico com intertextualidades viciantes. Uma dimensão de “blockbuster com a majestade de um filme de arte”. 

“Não, Não Olhe” traz uma escala maior em termos de produção e também de complexidade narrativa. O lugar insólito, o rancho meio isolado e seus arredores, como o parque temático Jupiter ‘s Claim, estão sob a vigilância de uma nuvem que não se move. E os efeitos especiais são tão espetaculares – ainda que às vezes simples e engenhosos quando o frame enquadra o interior ovni. A presença insidiosa do ser, extraterrestre e senciente, tem paralelos com clássicos B sci-fi como “A Bolha Assassina” (1958), “Alien – O 8o Passageiro” (1979) e preferencialmente “O Enigma do Outro Mundo” (1982).

Deferência e inferência 

A conexão mais óbvia de dentro do invólucro de “Não, Não Olhe” seria com filmes de Steven Spielberg e M. Night Shyamalan, porém os antecessores não ousaram tanto quanto Peele. Isso se deve a demonstração de como certos cineastas hoje sentem mais necessidade e segurança em expandir, ir além da norma clássica do filme. E Peele, de fato, só consegue romper, subverter essa estrutura convencional após dois filmes muito bons, podendo agora fazer uma obra onde nem tudo que fica superposto no encadeamento dramático tem seu segredo revelado (ainda bem!), ampliando a ressonância artística da obra. 

Lendário, Hoyte Van Hoytema (“Ela”, “Spectre”, “Ad Astra”) fotografou e abraçou o imaginário de Peele nas composições visuais absurdas de “Não, Não Olhe”. O imagético, representado pelo que se vê, se compreende e absorve ao longo da experiência de espectatorialidade, é catapultada no IMAX, que penetra fundo nos dias demasiadamente claros e empoeirados e nas noites azuladas e misteriosas. O simbólico também está na paleta de cores, inclusive das vestes de OJ e de Em. 

De rostos deformados a visitantes de outros planetas os filmes B são fortemente celebrados em cada frame de “Não, Não Olhe”. Além dos cavalos, que não só são personagens como ajudam a contar o enredo, se tornando disparadores de cada nova sequência dramática. 

Nicholas Monsour – que já havia trabalhado com Peele em “Nós” – conecta os elos da história dos cavalos, do show de Jupe e Gordy e dos acontecimentos cada vez mais intensos no rancho que vão escalonando até o grande enfrentamento/gravação, em uma montagem que demarca um ritmo de grandiloquência e reverberação da premissa até o minuto final. 

Cavalgando por aí  

E a sintonia fina na forma com que as camadas de sons e a musicalidade negra é entremeada a elementos recorrentes em gêneros cinematográficos (a gaita no faroeste, o sintetizador nos filmes de temática especial) pelo grande Michael Abels é espetacular ainda rendendo um momento de contemplação com Keke Palmer dançando “Walk on by” na voz de Dionne Warwick e arranjo do maestro Burt Bacharach. E cabe homenagens, como nas climáticas faixas “Wishing Well” e “Nope” – evocando trilhas de Ennio Morricone para filmes de Sergio Leone. 

A câmera olha, vigia, registra e mergulha no que está oculto. É o fundo do poço visto do espaço, pronto para disparar o obturador. Sublime e subliminar, o olho do cinema é mimetizado tanto nas câmeras que o carismático Angel Torres (Brandon Perea) instala e olha quanto na persona do filmmaker e fotógrafo – curiosamente fascinado pela brutalidade do mundo animal – Antlers Holst (Michael Wincott) que se une a trupe de caçadores de UFOs. E ainda no testemunho ocular de Rick Park, mais conhecido por Jupe (Steven Yeun) que tem impresso na memória uma imagem macabra, mas não o impedindo de transformá-la em fonte de renda. 

Os eventos da sitcom de Rick e o macaco Gordy servem mais como um prenúncio do que parte da intrincada trama sobre a espetacularização combinada com ambição e instinto predatório (humana ou extraterrestre). 

Para Peele, o filme é como uma cavalgada, uma aventura que se traduz a partir da devoção ao espetáculo cinematográfico que são filmes como “O Mágico de Oz”, “King Kong” e “Jurassic Park”. Cabendo também evocar outros filmes – animes, no caso – que o cineasta adora: “Akira”, de Katsuhiro Otomo, quando Em desliza na moto fugindo do Jaqueta Jeans; ou a transmutação e forma evolutiva que torna o monstro, a coisa que veio do espaço, um parente próximo de Zaruel, um dos anjos, as criaturas divinas de Adão que criam o caos na “Terra em Neon Genesis Evangelion”, de Hideaki Anno. 

Devoção ao ofício

A filmagem impossível na luz mágica, que sacramenta o arco do personagem sonâmbulo Antlers Holst em um mundo de imagens velozes, recorrentes e descartáveis – ou imortalizadas no mundo virtual, como meme – se unifica no discurso fílmico de “Não, Não Olhe” com o compromisso devotado que Peele tem no seu trabalho como cineasta. O espetáculo de grandes proporções, a aventura que arrebata o público, que traz euforia e encantamento, está materializada nesse filme “tour de force”, verdadeira façanha de um autor moderno e disruptivo – ainda que ironicamente sonhador.