Retrato de uma Jovem em Chamas tem um jeito muito especial para falar sobre sua história de amor. A diretora francesa Céline Sciamma constrói sua obra a partir de três conceitos principais para discutir o amor e a paixão: o olhar – a ideia matriz que rege a essência do filme nas ações não verbais dos personagens femininos -, o desejo –  atividade meio fim para transmitir ao público a partir do olhar, os sentimentos delas -, e a memória afetiva – responsável em unir os dois elementos citados e que suscita, através das imagens, convocar este mesmo público a questionar o seu próprio olhar e assim, evocar suas próprias sensações particulares. Tudo isso focado em um pilar muito particular que é investigar o funcionamento íntimo do ser feminino (sua subjetividade) sobre o manifesto do poder da arte. 

Ao narrar de maneira gradual, Céline mostra o amor de duas mulheres na França do século 18: Marianne (Noémie Merlant) é uma jovem pintora que chega a uma ilha afastada da Bretanha para fazer o retrato de Héloïse (Adèle Haenel), sem que ela saiba. A pintora descobre que Héloise foi prometida a um homem italiano, sendo que o trabalho para qual foi contratada servirá para apresentá-la ao futuro marido. Ao passar seus dias observando Héloïse e as noites pintando, Marianne se aproxima intimamente cada vez mais de sua modelo. 

Retrato de uma Jovem em Chamas exerce uma força tremenda pela maneira sutil e incisiva de como trabalha o olhar de desejo e da memória nas suas imagens, sempre por meio de pequenos gestos, curiosidades e fascínios estabelecidos na dinâmica das suas duas mulheres, sem precisar deixar claro os pensamentos de cada uma (o recurso de voice-over é até utilizado, mas ele é tão econômico que só aparece no início e final do trabalho).

A câmera de Sciamma captura esse relacionamento da maneira mais autêntica, imersiva e visceral possível. O olhar para a diretora não serve apenas como um jogo de interesses na descoberta ou experimentação dos sentimentos entre Marianne e Héloise e sim como elas transmitem isso para o público. Cada olhar entre elas deixa a impressão de que os sentimentos estão invadindo a tela e a incendiária paixão que brota e pulsa na relação, serve para o público acompanhar a lapidação daquele amor em estado bruto.

 FASCÍNIO PELA DIFERENÇA 

Há muitas camadas e nuances a serem descobertas dentro filme. Cada enquadramento criado, dá uma textura tocante de uma pintura, graças a fotografia de Clair Methon sempre incidindo nas conversas entre Marianne e Héloise ao explorar ambientes como o cenário da praia, para impregná-los com uma melancolia atrelada a dor e alegria, que revela no fundo, o fascínio de se desvendarem. 

É nessa troca de interações que reside a força do feminino, em um local que praticamente não há homens, cujo espaço é das mulheres. Retrato de uma Jovem em Chamas representa o fascínio pela diferença. A obsessão privada que suas amantes têm pelos gestos e maneirismos uma das outras é o principal elemento de investigação interposto pelo filme. Esses atos representam como transformamos em pura memória a lembrança da paixão que jamais uma convenção social – o casamento de Héloise ou a própria sociedade patriarcal da época – pode retirar de nós. 

Aqui a ideia de “amar” transmitida pelo filme não poderia trilhar pelo caminho de um transe muito particular: da entrega ao amor sem medo, sobre não se arrepender das coisas que fazemos na vida, por causa da dor, mas, em vez disso, olhar para elas com carinho e ficar feliz por essas memórias nunca nos deixarem, algo que é bem retratado na releitura feita pelo texto ao mito de Orfeu e Eurídice, que traduz nas suas entrelinhas, o enorme querer de permanecer mais tempo ao lado da pessoa amada, seja pela enorme liberdade que o sentimento produz, seja pela memória de um amor efêmero. É uma visão sobre a mulher contemporânea que na busca de vencer o vazio, sempre está refletindo sobre a origem dele. 

Sciamma encapsula esse mundo particular, de um relacionamento condenado entre mulheres, através da potência do seu conteúdo textual e no espaço e tempo intimista do seu longa-metragem. É fácil reparar que a primeira metade é composta por olhares cheios de tensão e desejos a partir de um jogo ambíguo que transmite uma sensação densa e dramática ao longa. Na sua segunda parte, quando a relação é consumada, tudo fica mais relaxado, as mulheres se relacionam pela cumplicidade, sorriem, a pintura flui e o ritmo do filme fica mais leve e alegre. É como se ambas se apegassem a vida, tornando-se fortes ao se sentirem amadas. Dessa forma, buscar se conhecer faz parte do processo de amadurecimento entre Marianne e Héloise, pois assim elas deixam de se amarem somente pela imagem – representada no trabalho da pintura –  para se amarem também no real, através do cuidado, responsabilidade, respeito e conhecimento, que só somente pessoas maduras conseguem, de fato, amar.

 MANIFESTO SOBRE SORORIDADE 

Se o roteiro já forte por levantar estas questões, ele também se reveste por uma sororidade que é bem ajustada ao discurso sobre a arte. O trabalho de pintar de Marianne à medida que se desenvolve, praticamente se torna um personagem do filme, transformando a relação das duas em uma espécie de triângulo amoroso. A sequência em que Héloise assume a liderança na criação de arte do trabalho, tornando-se uma colaboradora de Marianne em vez de ser apenas o objeto de seu olhar, revela essa fraternidade feminina. 

Sciamma evoca também a pintura e a literatura romântica para falar sobre o despertar sexual, comunhão, maternidade, tradição e proteção. Duas cenas merecem destaques: a primeira de um aborto, filmada pela diretora em um plongée (ângulo alto), em que um bebê dá força à mulher que aborta é de um viés dramático forte e belíssimo. Já a segunda reúne um grupo de mulheres ao redor de uma fogueira entoando uma música é de um rigor plástico formidável por expor o Sagrado Feminino, além de dar um toque de terror, digno de um filme de bruxas e servir de explicação para o simbolismo por detrás do título da obra. Neste aspecto é interessante observar como o roteiro utiliza vários símbolos para denotar a semiologia dos seus personagens: a água (liberdade), o fogo (desejo), a terra (a feminilidade) e as cores dos figurinos que diferenciam a personalidade das duas protagonistas. 

É claro que dentro deste contexto, vale ressaltar a força das atrizes. Adèle Haenel, uma das jovens mais carimbadas na França nos últimos anos, aprofunda as ambiguidades de Hèloise, seja através dos seus atos ou gestos enigmáticos. Já a desconhecida do grande público, Noémie Merlant se destaca por oferecer uma expressão penetrante que facilita muito o eixo conceitual do filme sobre o olhar. As duas fazem uma conexão belíssima, estabelecendo um peso dramático para os conflitos de ambas personagens na trama. Não vou negar que se tem algo que me incomoda no filme é apenas seu estilo extremamente racional – para não dizer intelectualizado – que Sciamma direciona certas cenas. Senti falta de um toque mais emocional, principalmente no momento que as duas assumem a relação. 

Fora isso, Retrato de uma Jovem em Chamas não deixa de ser uma clássica história de amor, mas que por debaixo desta estrutura, existe um inquérito narrativo que exala feminilidade e fala sobre mulheres, seus corpos, suas memórias e suas imagens, cujas paixões lhe são negadas. Só que Sciamma não está preocupada em fazer da sua obra um gesto político – ainda que isso faça parte da sua essência de conscientização – e sim como elas vivenciam seus desejos e liberdades dentro dos seus papéis no âmbito íntimo. Ao encerrar seu filme com um zoom nas feições de Adèle Haenel ao som de “As Quatro Estações” de Vivaldi, a diretora constrói um dos desfechos “Eu te Amo” mais catárticos e bonitos do ano no cinema.

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