O capixaba Caetano Gotardo traz um currículo extenso no cinema brasileiro: parceiro da dupla Juliana Rojas e Marco Dutra, ele foi o montador de “As Boas Maneiras” e “Trabalhar Cansa”, duas dos filmes nacionais mais elogiados na última década. Na direção, viu o curta “Areia”, de 2008, ser selecionado para Semana de Crítica do Festival de Cannes e conquistar três Kikitos no Festival de Gramado.   

Já o paulistano Carlos Escher traz uma vida dedicada ao teatro com uma grande parte desta trajetória de mais de duas décadas na Companhia do Latão. Nas telonas, já estrelou filmes como “A Idade da Pedra”, “Três Tigres Tristes” e “A Máquina Infernal”.  

Agora, os dois se reúnem em “Seus Ossos e Seus Olhos”. Selecionado no Festival de Roterdã de 2019, o filme chega somente agora aos cinemas do Brasil por conta dos atrasos provocados pela pandemia da Covid-19. Na história, o cineasta de classe média Antônio (Wandré Gouveia) está habituado a passar por uma série de encontros e desencontros durante sua rotina. Desde relacionamentos mais habituais e simples como Irene (Malu Galli), uma amiga de longa data, até seu namorado Álvaro (Vinicius Meloni) e seu companheiro casual Matias (Carlos Escher), com quem mantém relações apenas sexuais. Tudo o que ele vive eventualmente se converte em inspiração e criatividade, como as longas conversas com amigos e os encontros com desconhecidos, que geram reflexões pessoais.  

O Cine Set conversou com Caetano e Carlos sobre curiosidades do filme, o longo intervalo da circulação nos festivais até a estreia, a performance dos corpos e muito mais. Confira abaixo:  

Cine Set – “Seus ossos e Seus olhos” foi gravado antes da Pandemia e circulou por alguns festivais. Agora, ele chega nesse cenário pós-Pandemia e um novo sentido (ou não tão novo assim) dos relacionamentos. O que vocês esperam da recepção do público diante destes novos contextos?  

Caetano Gotardo Estamos voltando ao filme agora. Gravamos em 2018, circulou em festivais em 2019 e, então, veio a pandemia. O lançamento nos cinemas está promovendo este reencontro até por termos passado um tempo sem vê-lo e mostrá-lo. Agora, quando conseguimos esta distribuição, foi interessante assisti-lo por ter ganhado camadas diferentes. Não apenas por conta da pandemia, mas, também com estes quatro últimos anos de tudo o que ocorreu no Brasil e no mundo. Várias coisas no filme foram ganhando novas leituras.   

Quanto à pandemia em si, “Seus Ossos e Seus Olhos” é muito constituído de encontros presenciais, de personagens que se cruzam, seja após terem marcados ou por acaso ou por viverem juntos. Depois de tudo o que passamos, isso ganha novos significados.   

Durante o período de circulação nos festivais, eu achava muito interessante como o filme deixa espaço para a relação subjetiva do público para com ele. Vejo leituras e reações muito diferentes, especialmente, emocionais, além de identificações em certas cenas que eu nem esperava. Para algumas pessoas, era uma obra sobre incomunicabilidade, enquanto outras viam um longa sobre a possibilidade de encontros.   

Carlos Escher – Acho que “Seus Ossos e Seus Olhos” consegue um feito raro do tempo da cena ser da mesma duração do tempo da vida. Digo isso porque, na minha visão, o tempo da vida é muito angustiante, longe do conforto.  

Cine Set – Queria falar da onipresença da cor azul. Há uma explicação muito interessante através da personagem Irene (Mallu Galli) e eu queria que falasse mais disso. Mas também fiquei pensando na relação/paralelo entre o significado para nós brasileiros, que remete comunicação, paz, tranquilidade. Para os estadunidenses o azul é tristeza, melancolia, até estágio depressivo. Que por sua vez, lembra a trilogia das cores do Krzysztof Kieslowski, que a cor azul representa liberdade. Quero saber a sua percepção do uso da cor em “Seus ossos e seus olhos”.  

Caetano Gotardo A presença do azul realmente foi pensada, sendo executada pelo diretor de arte, meu amigo e artista plástico incrível, o Gabriel Pessoto. Falamos sobre utilizar um tom que fica entre o verde e o azul. Em alguns casos, porém, veio o acaso, como um móvel emprestado por um amigo meu, casando com a proposta do “Seus Ossos e Seus Olhos”. Depois, veio a unha da Mallu e começamos a gostar desta ideia da cor espalhada pelo filme.   

Também adorava de uma história real que circulou pelas redes sociais de que antes do azul ter um nome é como se as pessoas não enxergassem esta cor. Acho que isso casa bem com o filme pela força das percepções e de que algo só passar a existir após você nomeá-lo. A obra joga muito com este campo da razão em oposição ao abstrato e sensorial. Acaba que o azul reforça este lado sensorial de construção dramatúrgica de “Seus Ossos e Seus Olhos”. 

Cine Set – O filme é muito corporal. Essa performatividade do corpo se faz presente ao longo dele até o fim. Daí eu lembrei de uma fala da Suely Kofes em um texto chamado “E sobre o corpo, não é o próprio que fala? Ou, o discurso desse corpo o qual se fala?”. Ela diz assim: “o corpo estará aprendendo a desobedecer ou a obedecer às regras do prazer? O corpo saudável se permitiria ouvir as queixas dolorosas do seu corpo ou nem lhe permitiria expressá-las?”. Porque o corpo é expressão, né? E no filme ele se expressa de muitas formas, mas sempre muito melancólico. E é muito teatral também. Fala um pouquinho disso para a gente.  

Caetano Gotardo Incrível este trecho! De fato, o filme passou mesmo por uma pesquisa performativa mesmo. O centro da obra está permeado por este corpo em movimento e o corpo parado. Conversei muito com a Flora Dias, a diretora de fotografia e uma grande parceira, sobre como captar, filmar estes corpos e que tipo de presença eles teriam para além da performance dos atores. 

Há muitos planos com corpos inteiros em quadro como, por exemplo, todo o momento inicial do meu personagem procurando uma posição naquela sala. Logo em seguida, corta-se para trechos em que se exibem fragmentos deste corpo sobre o tapete. Já as duas cenas de sexo são planos com os dois corpos inteiro em quadro. Foi um realmente um trabalho de pensar nesta dinâmica entre o corpo inteiro e fragmentos em cena a partir do que isso comunica e cria como dramaturgia.   

Havia também a preocupação com os movimentos: uma das bases de pesquisa de “Seus Ossos e Seus Olhos” tinha a ver com a dança. Mesmo não sendo da área, busquei pensar a obra também do ponto de vista de um prisma coreográfico, fazendo com que a palavra e o movimento dos corpos de relacionassem e tivessem peso semelhante, entrando em conflito ou confluência.  

Cine Set – “Tudo é memória”, é uma frase muito forte que carrega bastante significado. Nosso corpo é memória. Quais são as memórias mais bonitas, prazerosas, penosas que dão significado a pessoa e ao artista Caetano Gotardo e Carlos Escher?  

Caetano Gotardo Que difícil esta pergunta… Tem um filme que acho muito bonito do Hirokazu Koreeda chamado “Depois da Vida” (1998). A premissa é que as pessoas mortas vão para uma espécie de limbo e terão alguns dias para escolher uma memória a ser reencenada, sendo esta a única lembrança que irá restar. Recordo de ter visto há muitos anos e, desde então, me pergunto qual seria a minha escolha e nunca fui capaz de responder. Tenho dificuldade de até delimitar cinco, imagine uma.  

Somos constituídos de tantas coisas que fica difícil saber o que nos construiu exatamente. Eu gosto de refletir sobre a memória, de lembrar de coisas, pensando nela sempre como um campo muito ativo de invenção e reinvenção. Fora que há várias camadas dela – a memória pessoal, a memória social, etc.  

Agora, para fazer o filme, também utilizei as memórias de várias pessoas, inclusive, pedindo a autorização quando era preciso. Gosto muito de ouvir os relatos e histórias dos outros. E elas nos alimentam, pois, sou capaz de me reconhecer em uma situação vivida por alguém.   

Esta capacidade das histórias nos cruzarem é interessante porque houve uma vez em que fui abordado energicamente por uma pessoa em um festival fora do Brasil. Após a sessão, ela disse: “você roubou minha história. Eu vivi exatamente aquilo que a Irene conta na primeira cena”. Esta identificação em relação à narrativa e a forma como chega ao público através do trabalho de um ator é algo muito bonito.  

Carlos Escher – A memória é algo muito importante e significativa para mim por me conduzirem. Agora, eu tenho vergonha de dizer quais são elas (gargalhada). 

Cine Set – Minha última pergunta: qual é a ambição destes corpos para agora? Vocês já têm projetos ou vão apenas seguir o momento do fluxo com o lançamento de “Seus ossos e Seus olhos”? 

Caetano Gotardo – Interessante a maneira como você formulou a pergunta porque sempre tem as coisas que estou realizando e outras que o meu corpo está pedindo, mas, não estou fazendo. A sua pergunta me fez pensar mais neste segundo ponto.  

Acredito que o meu corpo tem pedido mesmo que eu trabalhe mais como ator. Atuei bastante no teatro na adolescência, mas, quando fui estudar cinema pensei mais na direção e roteiro. E acabou sendo o que me sustenta e trabalho mais. Paralelo a isso, eu também componho canções, escrevo poesias, porém, ambos ficaram mais de lado nos últimos tempos. É algo que desejo voltar a fazer.   

Para além disso, estou muito animado com o lançamento do filme. Tenho vontade de encontrar as pessoas e conversar com elas sobre a obra. São encontros que me alimentam demais.   

Também estou com dois projetos de longa em diferentes fases de desenvolvimento. Neste momento, eu e Carlos ainda estamos fazendo uma peça curta de uma dramaturga amiga minha chamada Carla Kinzo. Sou o diretor, algo raro para mim no teatro, e Carlos é o ator. Serão somente duas apresentações em um lugar chamado Espaço Garganta, aqui em São Paulo.  

Carlos Escher – Estou muito empolgado com a estreia de “Seus Ossos e Seus Olhos”. É uma alegria dividir a obra com o público. Sou ator há mais de 20 anos e sempre pensei em desistir da carreira, mas, admito que tenho certa sorte porque emendo um trabalho em outro. Isso, claro, até a pandemia chegar quando todos os teatros fecharam. Eu falei comigo mesmo dizendo: “nunca mais vai falar que irá desistir deste negócio”. Então, estou envolvido atualmente com três projetos de teatro que me satisfazem bastante.