Não era nem 8h da manhã quando liguei para Morzaniel Iramari. Pedi desculpas por ligar tão cedo, mas, o primeiro cineasta yanomami não se importou muito. “Costumo acordar às 3h30, seja na aldeia ou na cidade”, disse antes do início da entrevista antes de tomar o café da manhã em um hotel em São Paulo.

A conversa aconteceu em um dia especial: Morzaniel faz parte do grupo de Yanomamis presentes no Festival de Veneza 2023 para lançarem três curtas-metragens. “Mãri hi – A Árvore do Sonho”, de Morzaniel Ɨramari, “Thuë pihi kuuwi – Uma Mulher Pensando”, de Aida Harika Yanomami, Edmar Tokorino Yanomami e Roseane Yariana Yanomami, e “Yuri u xëatima thë – A Pesca com Timbó”, foram exibidos dentro da programação “Eyes of the Forest”, Olhos da Floresta, durante o tradicional evento italiano. A sessão aconteceu em 4 de setembro, véspera das comemorações do Dia da Amazônia.

Nesta entrevista exclusiva ao Cine Set, o diretor fala sobre a força do cinema Yanomami e o que representa estas produções na luta para os povos originários: 

“Mãri hi – A Árvore do Sonho” disputou o Festival de Gramado deste ano. Foto: Morzaniel Iramari

Cine Set – O que representa para o senhor este momento de participar de um dos maiores festivais do planeta? Alguma expectativa, algo que queira fazer? 

Morzaniel Iramari – Quando participo de festivais, eu levo a história do povo Yanomami para contá-la ao público destes locais, especialmente, fora do Brasil. Serve para que conheçam a nossa luta pelos direitos da terra, da floresta. Vou contar, falar para que comecem a entender o nosso sofrimento. Não estou indo para passear ou fazer turismo; vou para Veneza defender meu povo, costumes e tradições Yanomamis.   

Cine Set – Em entrevista ao Estadão, o senhor diz que o documentário é luta. Qual o impacto sente que o cinema traz para o fortalecimento da luta Yanomami?  

Morzaniel Iramari O nosso cinema luta pela Floresta Amazônica e pelo povo Yanomami. Quando comecei a fazer o filme, já tinha a ideia de como levar a história indígena para chamar a atenção do povo da cidade, mostrando a destruição da nossa terra, de como a saúde e a educação estão ruins. Desta forma, serve para quem assiste que comece a pensar e entender os Yanomamis para que isso seja assunto nas escolas, universidades, entre outros espaços. 

Cine Set – Durante toda a existência do cinema, os povos originários foram vistos do prisma do homem branco. O próprio domínio técnico dos equipamentos e a construção da narrativa cinematográfica mais tradicional passou longe da ótica indígena. O que representa esta quebra de paradigma trazida pela produção de vocês? 

Morzaniel Iramari – Os brancos filmavam na terra Yanomami, mas, não nos apresentavam o que faziam. Era tudo gravado para passar em festivais mostrando a beleza da natureza e do nosso povo, mas, sem citar aquilo que desejávamos ou nos representar. Não queremos mais o homem branco filmando, pois, eles colocam ao contrário, sem a nossa fala. Hoje, o cinema Yanomami, feito pelos próprios indígenas, conta a verdade, fala a verdade, mostra a verdade, tem a nossa voz. Não é ficção, mas, sim documentário. Ficção, para nós, não faz sentido, é algo mentiroso.  

Curta-metragem foi exibido também no Olhar do Norte 2023. Foto: Morzaniel Iramari

Cine Set – Como iniciou a parceria com o Eryk Rocha e a Aruac Filmes?  

Morzaniel Iramari Eu não conhecia a produção deles nem sabia o que era a Aruac. Eryk começou a estudar sobre o tema após ler um livro chamado “A Queda do Céu”, escrito pelo Davi Kopenawa Yanomami e o Bruce Albert. Ele gostou e teve a ideia de ir à terra Yanomami pensando em gravar um filme sobre o Davi.  

Nesta época, eu morava em uma outra região e o Eryk foi até Boa Vista para encontrar o Davi Kopenawa e conheceu a Hutukara Associação Yanomami. Eles conversaram, Eryk perguntou se seria bom fazer o filme e a resposta foi positiva, mas, colocaram a falta de representatividade indígena no cinema. Foi, então, que lembraram do meu nome e me procuraram via rádio comunicação – na reserva, não se usa telefones celulares.  

Entraram em contato comigo explicando sobre a Aruac e do convite para trabalharmos juntos. Depois disso, lembro que fui para a aldeia onde nasci, estava tendo uma festa e, de repente, o Eryk chegou junto com a equipe. Conversamos e não demorou muito para já começarmos a gravar. A parceria continua até hoje e indo agora para Veneza. 

Cine Set – No fim do curta, o Davi Kopenawa Yanomami fala sobre a esperança de que a humanidade seja mais sábia conhecendo a realidade de você e lidando melhor com a natureza. O senhor acredita que isso seja possível em um futuro próximo ou estamos ainda muito longe? 

Morzaniel Iramari Ele fala a verdade, todos os Yanomamis falam a verdade. O homem branco está longe deste ideal, não está perto de nós. Acredito que o homem branco precisa estudar, se aproximar mais para conhecer realmente o povo Yanomami. Entender quem somos, como moramos, qual é o tipo de vida que levamos. É necessário que comecem a nos respeitar e parar com o preconceito. Para isso, precisa-se ouvir e olhar mais para os povos originários. Esta é a grande mensagem do final de “Mãri-hi – A Árvore do Sonho”. 

Cine Set – “Mãri-hi” já foi exibido nas aldeias e junto ao povo Yanomami? Como foi para eles se verem na tela e os significados nestas exibições para eles?  

Morzaniel Iramari Ainda não exibimos o filme nas terras Yanomamis porque eles já conhecem o universo dos sonhos apresentado ali. “Mãri-hi – A Árvore do Sonho” é voltado mesmo para a cidade e as pessoas nela conhecerem a nossa cultura. Mas, há sim um projeto de exibirmos em breve nas aldeias. 

Cine Set – O senhor já trabalha em algum novo projeto? Pode adiantar algo, por gentileza? 

Morzaniel Iramari Não posso adiantar muitas coisas porque ainda está na fase de projeto, mas, antecipo que será um longa-metragem de documentário.